Impensável que viesse de um general dissidente do bolsonarismo aula de direito constitucional aos juristas autoritários brasileiros, sempre de prontidão para prestar serviços obscuros a governos golpistas e que parecem ter Francisco Campos como patrono.
Sem sua erudição, pretendem rasgar mais uma Carta Magna: aquele, as de 1934 e 1946, seus áulicos, a de 1988 —como se esta já não tivesse sido maltratada. Diferentemente de Campos, porém, que punha uma carta no lugar da outra, seus aprendizes querem fazê-lo por meio de interpretação desconforme.
Em artigo nesta Folha (“ STF ou Exército?”, 9/5), recuperei o debate sobre o “poder moderador” na Constituição de 1891. Tanto quanto o artigo 142 da atual Carta, o artigo 14 daquele diploma dava margem a dúvida sobre o papel das Forças Armadas, “obrigadas a sustentar as instituições constitucionais”. Rui Barbosa, nos seus “Comentários à Constituição Federal”, esclareceu: se coubesse às Forças Armadas, como alguns queriam, a solução de conflitos constitucionais, elas, e não o STF, seriam o Supremo Tribunal da legalidade, e aqueles se resolveriam, não pela toga, mas pelas armas.
Vale nota de aplauso, portanto, ao general Santos Cruz, que em artigo em O Estado de S. Paulo (28/5) argumentou: “a busca de harmonia é obrigatória aos três Poderes. É uma obrigação constitucional. As diferenças, o jogo de pressões e as tensões são normais na democracia, e as disputas precisam ocorrer em regime de liberdade, de respeito e dentro da lei”.
Sobre o inquérito aberto pelo Supremo Tribunal Federal para apurar crime de calúnia e difamação nas redes sociais contra a corte —tema do atual conflito “legal” entre Bolsonaro e o STF—, valho-me da boa manifestação do então advogado-geral da União, sucessor de Moro no Ministério da Justiça.
Em 19 de abril de 2019 , André Mendonça afirmou textualmente que: 1) o regimento interno do STF —que prevê abertura de inquérito para apurar infração à lei penal na sede ou dependência da corte— tem força de lei e goza de presunção de constitucionalidade; 2) a privatividade que a Constituição conferiu ao MP para a propositura e o manejo da ação penal pública não se estendeu às investigações penais; e que 3) considerando que os atos investigados são praticados pela internet, o conceito de “sede” ou “dependência” abrange a jurisdição da própria corte, ou seja, todo o território nacional.
A mudança de postura do atual ministro da Justiça é, portanto, incompreensível por critérios jurídicos.
O direito pátrio, historicamente, teima em se metamorfosear a depender de quem ele está próximo de alcançar, assim como alguns juristas.
Fernando Haddad, professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo. Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo.
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