Por George Queiroz: A bicicletada venceu a motociata

No segundo turno, mais de 30 cidades fizeram um Pedalula. Em São Paulo, foram quase 500 ciclistas. (Foto de Ivson Miranda)

Domingo, 15 de maio de 2022. Na Avenida Paulista, região central de São Paulo, cerca de cem ciclistas se reuniram pela primeira vez para um evento chamado de PedaLula. Como o nome deixa claro, o ato era uma pedalada de apoio ao então pré-candidato à Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva, organizado de forma independente por um grupo de cicloativistas paulistanos.

O encontro era festivo nas ruas, mas logo ganhou tensão nas redes. Enquanto os ciclistas pedalavam em direção ao centro da cidade, os grupos de WhatsApp e Instagram criados para divulgar o evento foram agressivamente invadidos por militantes bolsonaristas. Poucas horas depois, um conhecido youtuber de extrema direita, com mais de 1 milhão de seguidores, dedicou um vídeo inteiro para debochar do suposto fracasso retumbante do PedaLula, traçando uma comparação com o “sucesso” das motociatas promovidas há meses por Jair Bolsonaro. Usando planos abertos do pedal e até sugerindo que as bicicletas eram roubadas, o extremista tentava provar que a larga vantagem de Lula nas pesquisas de opinião era falsa, uma clara manipulação dos institutos responsáveis pelas entrevistas. Na sua lógica distorcida, uma eventual vitória do petista pelas “suspeitas” urnas eletrônicas seria, portanto, uma fraude inaceitável.

As motociatas citadas pelo influenciador eram promovidas regularmente desde 2021 pelo presidente da República. Enquanto o país sofria com uma pandemia que matava milhares de cidadãos todos os dias, o Chefe de Estado fazia questão de utilizar recursos públicos vultosos para participar desses convescotes motorizados e fazer campanha eleitoral antecipada, em passeios que ocorriam até mesmo em horário de expediente. A motociata que aconteceu no dia 15 de abril em São Paulo, batizada de “Acelera Com Cristo” por acontecer em um feriado religioso, custou R$ 1 milhão aos cofres públicos, segundo o Governo de São Paulo. Um efetivo de mais de 1.900 policiais militares foi empregado na operação.

No segundo turno, mais de 30 cidades fizeram um Pedalula. Em São Paulo, foram quase 500 ciclistas. (Foto de Ivson Miranda)

As motociatas cumpriram um papel midiático importante na campanha bolsonarista. Ao contrário dos comícios tradicionais, as motocicletas garantiam um certo distanciamento entre os presentes, diminuindo as críticas sobre o total descompromisso do governo com as medidas básicas de proteção coletiva contra a Covid-19. O espaçamento entre os veículos também tinha um outro efeito curioso – as manifestações pareciam maiores do que realmente eram. Enquanto as redes bolsonaristas, especializadas em criar campos de distorção da realidade, noticiavam que os atos levavam até mesmo milhões para seguir o candidato, as contagens eletrônicas demonstravam que o número real de presentes era absurdamente inferior ao divulgado. A motociata de 15 de abril em São Paulo foi amplamente divulgada nos grupos de direita como “A maior motociata da história”, mas os dados de pagamento de pedágios da concessionária da rodovia confirmaram a presença de apenas 3.700 pessoas.

Os eventos motorizados também passavam uma mensagem muito direta para o público fiel da extrema-direita. Funcionando como uma simulação de desfile militar, a marcha reforçava a figura de um líder que avançava à frente de seu exército de seguidores. Os encontros eram organizados por motoclubes, cujo público sempre foi a cara do bolsonarismo: homens velhos, brancos, de classe alta e saudosistas, exibindo suas Harley Davidson’s como comprovação de status econômico e de afirmação heterossexual. Não é por acaso que um dos primeiros governantes a promover esse tipo de ato barulhento foi justamente o maior líder fascista, Benito Mussolini.

Nos meses seguintes, as silenciosas bicicletadas do PedaLula continuaram a acontecer periodicamente, mas bem longe do radar da direita. Canais pequenos nas redes sociais anunciavam pedaladas periódicas onde alguns ciclistas empunhavam bandeiras e gritavam por Lula no centro da cidade. A pré-candidatura de Lula ainda estava em seus primeiros passos, e ele ainda era acusado pela direita de ter “medo” das ruas.

George Queiroz (com microfone) em um dos primeiros pedais na Praça Roosevelt. (Foto de Ivson Miranda)

E como que eventos de grande impacto como as motociatas foram derrotados e os pequenos eventos ciclísticos deram certo?

O segredo é entender que o PedaLula não era um evento isolado, mas uma das tantas atividades promovidas pelos mais de 7 mil Comitês Populares de Luta formados no Brasil em 2022.

Proposto pelo Partido dos Trabalhadores no início do ano em articulação com movimentos sociais e sindicais, os Comitês Populares de Luta permitiam a descentralização da futura campanha de Lula, com núcleos populares de atuação independente. Foi um chamado para a base resgatar o trabalho militante não só em seus territórios, mas também em grupos temáticos. O PedaLula, focado nos ciclistas, era um deles, inspirado no Pedal Lula Livre de Recife, que ocupava as ruas da capital pernambucana desde 2019 contra a prisão injusta do líder petista.

A chegada da campanha trouxe a criatividade dos coletivos. Se os ciclistas pedalavam, o coletivo Caminhantes e Corredores Com Lula chamava atletas para atividades de corrida engajada. Os blocos de carnaval faziam o CarnaLula, que também contou com a presença das Torcidas Antifascistas. Sessões de cinema em praça pública e pintura de camisetas foram organizadas pelo coletivo CorAção. O coletivo Festas Lulinas promoveu “toalhaços” em parques. Mães ativistas promoveram uma “Carrinhata” com seus bebês.

Ciclistas do Pedalula descem a rua Augusta em São Paulo. 16 de outubro. (Foto de Ivson Miranda)

No interior do Nordeste, cidades pequenas juntavam multidões em grandes festas de apoio a Lula, com a população seguindo os chamados “Paredões” e divertindo-se com as já clássicas “Maderadas”, músicas bem humoradas de apoio a Lula compostas pelo artista Juliano Maderada, que chegaram a liderar a parada brasileira de sucessos no Spotify. Nenhuma dessas atividades foi promovida diretamente pelo núcleo oficial da campanha de Lula, foram iniciativas espontâneas que abriram o leque de atuação da militância.

Os Comitês Populares demonstraram por que Lula afirma que o PT é o único verdadeiro partido político do Brasil, o único com uma atuação orgânica e voluntária capilarizada por todo o território nacional. O próprio candidato orientou pessoalmente sua campanha a manter uma agenda agressiva de eventos presenciais, contrariando uma orientação de que ele deveria se resguardar para entrevistas que potencialmente alcançariam um público maior. Mais do que atingir as pessoas diretamente, Lula deixou claro para a sua militância que uma eleição se ganha nas ruas. Por mais que a campanha tenha produzido ótimos materiais de comunicação para as redes, manter o pique da campanha “analógica” era uma mensagem fundamental a ser passada.

Enquanto o bolsonarismo continuava com suas manifestações prepotentes de grandeza e breguice como suas motociatas, jetskiatas, lancheatas, os Comitês Populares se ocupavam em manter o diálogo olho no olho com as pessoas, com aqueles que estavam sofrendo na pele o desastre da gestão atual. Acelerando motos em alta velocidade nas estradas, onde sequer há residências, a extrema-direita não abria qualquer comunicação real com as pessoas que iriam decidir seu voto. Já as atividades de rua dos Comitês chegavam às pessoas de fato, fazendo-as perder parte do medo de usar roupas vermelhas e de demonstrar que estavam com Lula. Enquanto as motos gritavam de forma agressiva, as bicicletas conversavam no pé do ouvido.

Piano piano, como sempre vão as bikes, os PedaLulas foram longe: cresceram e se multiplicaram em grupos independentes em várias capitais. No segundo turno, um chamado para um ato unificado fez com que mais de trinta cidades organizassem pedais de apoio a Lula, fato inédito na comunidade cicloativista. Nesse dia, ciclistas se reuniram simultaneamente desde lugares como Soure na Ilha de Marajó até na bolsonarista Itajaí, no litoral de Santa Catarina. De Porto Velho a Porto Alegre, as bandeiras pregadas na traseira das bikes e os bike-sons passavam por ruas, praças, mercados, praias, bares, feiras, e sem deixar nenhuma pegada de carbono, sem queimar um litro de gasolina, mantinham o contato olho a olho com pedestres e moradores dos bairros, levando às ruas uma alegria diametralmente oposta à notória violência dos adversários. Os cem ciclistas que se reuniram em maio na Paulista agora eram milhares espalhados por todas as regiões do Brasil. Mais do que isso: os vídeos e fotos registrando os eventos nas redes sociais registravam engajamento cada dia maior, sempre com milhares e milhares de visualizações e compartilhamentos, abafando qualquer nova tentativa de contra-narrativa pela máquina de mentiras do adversário.

É fato que a campanha de Bolsonaro também promovia encontros diretos com a população: infelizmente eram reuniões suspeitas para compra de votos e cultos religiosos transformados em comícios. A difusão de notícias falsas e fantasiosas contra o PT nas redes ocorria em escala industrial, buscando levar o pânico moral a populações vulneráveis. Mas as microrredes de esquerda formadas por Comitês Populares Virtuais, por artistas e influenciadores digitais e um certo aprendizado com tantos anos de absurdos fizeram o campo democrático mitigar esses ataques e isolar a extrema-direita em seu cercadinho.

E vencemos! Vencemos de forma sustentável, pedalando, cantando, dançando, distribuindo sorrisos e ganhando saúde. As motos e caminhões podem até parar o trânsito, mas as bicicletas sempre vão passar.

 

George Queiroz é cicloativista e co-fundador do Ciclo Comitê Popular de Luta de São Paulo.

 

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