A fé tem, entre outras virtudes, duas que são centrais: ela é, ao mesmo tempo, inflexível e fervorosa.
Inflexível porque não se dobra às adversidades por mais que implique em perseguições, castigos e escárnio por parte daqueles que não comungam com o credo; e isto exprime a imagem da força; a fé tem que ser forte, inabalável; não existe a constância de uma fé fraca ou meia-fé; a fé só pode ser vivida por inteiro; ela é plena, potente, densa, profunda, poderosa; e por isso, só pode ser, na maior parte do tempo, inflexível em sua crença, caso contrário, não é fé. Isto não quer dizer que, circunstancialmente, a fé não entre em crise. As crises de fé ocorrem como Frei Betto nos ensina, em seu livro Fome de Deus; mas, entendo que, no geral, o que prevalece é este sentimento inflexível e duradouro, ou seja, esta certeza inabalável, que alimenta a alma da causa a qual o fiel se entrega e se sacia em êxtase permanente.
E é fervorosa a fé, porque mobiliza com intensidade profunda a alma inteira para uma finalidade que é a causa que o crente busca e defende. A alma tem, então, ânimo, isto é, vida, e pulsa para cumprir a missão que entende estar predestinada.
Daí porque, religião ( de religare) significa ligar o homem à Deus. A religião é, portanto, uma ascensão da banalidade do cotidiano para uma transcendência, que é o retorno e comunhão com uma verdade superior designada, por exemplo, pelo nome de Iavé(Deus).
E, ( imaginem!), tantos homens, mulheres e Santos da Igreja, foram criticados e rotulados de alienados, ou seja, louca(o)s e, então, marginalizados nas sociedades que pertenciam; isto por vivenciarem uma experiência mística, que transcende e, portanto, ultrapassa os limites da rudimentar vida do dia a dia, com sua rotina tediosa e massacrante.
Em suma: a fé como amor ao próximo, como busca do sagrado, como encantamento do mundo é revolucionária.
No entanto, a teologia da prosperidade; este empreendedorismo “religioso” em voga nos dias atuais, não é ensinamento religioso, nem sequer fonte de fé.
E, aqui, ocorre algo que os ideólogos do capitalismo sabem fazer muito bem. Eles deturpam o sentido original de algo para, aos poucos, convertê-lo em seu contrário, embora as aparências induzam a crer que trata-se da mesma coisa, quando, na verdade, não é mais o original, mas, sim, sua cópia invertida e degenerada.
Desta maneira, a fé que é revolucionária transforma-se em uma crença conservadora; o amor ao próximo se converte em ódio ao próximo alcançando até os mais distantes; a busca pelo sagrado se torna na procura sagrada do luxo e o encanto do mundo torna-se um mundo em que, em cada canto, não há mais razão de ser; o mundo torna-se, então, banal e, por isso, decepcionante. A fraude é consumada para servir os interesses da lógica do mercado. A religião modifica-se em “religião” e, portanto, em mais um produto para ser consumido. O fiel agora é um “fiel” ( leia-se: um consumidor do mercado da “fé”.
Desta forma, quando tudo mudou assim do vinho para a água, foi o capitalismo quem triunfou. A religião não é mais religião e sim balcão de negócios, extensão do capital. O pastor não é mais a ponte para Deus, mas a estrada para o lucro. A Bíblia não é mais a Palavra de Deus, mas a linguagem financeira dos pastores(leia-se: neo-empresários) do povo (leia-se: clientes).
A religião torna-se “religião”( leia-se: centro financeiro da ostentação).
Até que são mantidos os templos, a cerimônia religiosa, as funções e as designações na Igreja, mas a direção da alma é outra; não é mais rumo ao sagrado, mas seu destino, agora, inverteu-se: é o profano, que por sua vez, passa a ser no entanto, o sagrado e o sagrado, aqui, entenda-se bem: é o dinheiro.
A alma que ascendia rola céu abaixo; está em queda e cai até o inferno do cotidiano que, não obstante, passa a ser adorado como o paraíso das oportunidades( leia-se negócios).
Nesta “religião” da rentabilidade celebra-se “Deus”(entenda-se: riqueza/luxo) por meio da “fé”(leia-se: senso de oportunidades). Este senso de oportunidades se mantém, porém, inflexível e fervoroso, mas sem crises, nem mesmo as pontuais; o “fiel”, assim, se desumaniza; e adquire, por isso, uma constituição fanática, doentia, irracional, burguesa, enfim, capitalista; nada pode frear o apetite de lucro. Então, o que era virtude converte-se em vício.E pronto. Os ideólogos do capital criaram uma “religião” à imagem e semelhança do modo de produção capitalista para idolatrá-lo e que, por este motivo, irão,diariamente, impor à consciência das massas.
Nesta “religião” a “fé” e seus vícios: a inflexibilidade e o fervor fanático, tornam-se instrumentos de dominação ou perseguição implacável. O ódio passa a ser a linguagem “divina” de um segmento dos evangélicos e neopentecostais seduzidos na defesa da propriedade privada e na promessa de prosperidade ao alcançar “Deus”(riqueza/luxo).
E, aqui, encontra-se um dos terrenos da luta de classes atual: o combate a ser também travado, no Brasil, no nível da superestrutura da sociedade capitalista.
Isto porque, o que Bolsonaro tem feito é intervir no dia a dia por meio da movimentação da superestrutura sobre a base (infraestrutura). Enquanto a estrutura ou infraestrutura, isto é, a base (relação de produção, base material, por exemplo) é mais dinâmica e altera-se com mais velocidade; ele conta com suporte proveniente da superestrutura, que altera-se mais lentamente. Por isto, a despeito de todo resultado negativo do governo, ele conta ainda com um apoio expressivo de cidadãos , pois, existe uma defasagem entre as condições materiais modificadas e sua percepção pela consciência social ainda alienada.
Daí porque, deve-se travar o embate ideológico neste terreno (o da superestrutura), a fim de impulsionar um progresso da consciência dos sujeitos históricos, visando, com isso, que estes possam acompanhar a evolução das condições materiais que deterioram e emancipar-se destas relações subjetivas de dominação para, então, liberta-se objetivamente na arena política.
A esquerda e, particularmente, o PT, não deve se furtar a este enfrentamento no nível da superestrutura; neste sentido, deve promover também o debate e contrapor a esta concepção conservadora da Bíblia, uma concepção progressista e que representa, na superestrutura, uma alternativa de interpretação bíblica: a saber, a Teologia da Libertação.
Ao mesmo tempo, deve publicizar a concepção evolucionista da natureza, ensinando ao povo ciência, para recriar um contexto de ideias plurais que, gradativamente, irão implodir a teologia da prosperidade ou subtrair a hegemonia que, no momento, possui junto a um segmento expressivo de crentes.
A luta neste campo será fundamental para construir-se na arena política a derrota de Bolsonaro e fazer avançar o Projeto de uma sociedade plural e civilizada.
A crítica e denúncia que faço, aqui, à teologia da prosperidade como uma fraude religiosa e o enfrentamento que se deve fazer a esta fraude busca desnudar a engrenagem interna do capitalismo nestas “religiões” dos donos do capital, que usam a boa fé das pessoas para aprisioná-las na defesa, muitas vezes inconsciente, de um sistema que precisa ser superado, para que não nos supere, destruindo a todos.
Charles Gentil
Presidente do Diretório Zonal PT do Centro; integrante do Democracia e Luta; Coordenador do Comitê Popular Antifascista Ponte Rasa Pela Democracia e Lula Livre