Esses dias, nessas minhas idas à cidade de São Paulo, conversando sobre a vida com M., uma grande amiga, ela me contou do quanto a coisa estava difícil por lá e do quanto ela estava apavorada com a possibilidade do racionamento de água. Minha amiga estava, na verdade, em pânico com a possibilidade de ter de conviver com os dejetos de outrem no trabalho e em casa, já que divide o apartamento com mais duas pessoas. Eu apenas escutava e achava compreensível aquele mal-estar.
Então, não sei explicar como e nem por que, mas nossa conversa foi assumindo acepções políticas e encontrei minha amiga totalmente inconformada com o fato de nossa amada cidade cinza rejeitar e desaprovar a administração do prefeito Haddad e, em contrapartida, desejar a reeleição do atual governador do estado. Ela discorria continuamente sobre as ciclovias, o corredor de ônibus e comparava essas iniciativas louváveis aos feitos do atual governador. Por fim, já completamente desesperada, ela olhou para mim com seus olhos nipônicos e expressivos e disse: “por que essas pessoas querem isso, Ni!?”
Como a nossa profissão é teorizar sempre muito sobre tudo aquilo que não compreendemos, assim nasceu a teoria das exclusividades, que, estou certa, é o que justifica a incansável perseguição da elite paulistana ao atual e, na minha opinião, admirável prefeito da cidade.
Ora, em São Paulo sempre foi assim: quem podia pagar, se divertia, chegava no horário, e com folga, aos seus compromissos, frequentava os lugares públicos protegido e blindado dentro de seu automóvel e, não disputava o espaço com a “ralé”. Higienópolis era um bairro pertinho do centro, mas protegido por fronteiras invisíveis bem mais poderosas do que qualquer construção física. Essa gente que não tem dinheiro ficava lá no lugar dela, sem nem se aproximar dos bairros nobres. E dessa forma, tudo era muito bom. Sampa era uma Bélgica brasileira, afinal, nem se cruzava com aquela gente feia e desgrenhada que não é igual “a gente”.
Mas aí, um belo dia, surgiu um “esquerda-caviar” que, apesar de ter crescido em meio à elite, achou que a cidade devia ser de todos e não apenas de uns poucos. Foi aí que toda a discórdia começou.
Ele teve umas ideias estapafúrdias de implantar em plena São Paulo todas aquelas coisas bonitas que vemos na Europa e achamos um banho de civilidade. Começou a dificultar as pessoas a circularem em suas Pajeros, para privilegiar o transporte público. Em seguida, esse senhor, teve a audácia de diminuir as faixas de estacionamento de carros, como a zona azul, para transformá-las – veja só – em ciclovias. Pintadas, ainda por cima, de vermelho. Mas de onde esse “cara” estava tirando tamanha loucura?
Pois é, infelizmente, é assim que nossa elite pensa. E o que é mais engraçado é que são justamente essas pessoas que vivem a enaltecer países europeus e os Estados Unidos por suas iniciativas de privilegiar sempre o público em detrimento ao privado. Daí, realmente, tenho que concordar com o surto aterrorizado e incompreendido de minha amiga. Por que essas pessoas acham todas essas iniciativas são tão lindas lá fora e as rejeitam tão veementemente quando são implantadas aqui dentro?
Porque a nossa elite, infelizmente, vive a lógica atrasada e pequena da manutenção das exclusividades e dos privilégios. Ficam extremamente chateados com o fato de demorarem no trânsito e acreditam que quem é pobre e não tem um carro, tem mais é que perder duas horas mesmo no trânsito dentro do ônibus. “Ah, eles já estão acostumados com isso! Moram lá longe! Deixa eles…!”. Defendem que a prefeitura deveria criar mais vias de acesso rápido para carros, como as marginais, por exemplo, e não desperdiçar o dinheiro público investindo num tipo de transporte que contemple todos os cidadãos da cidade. E acham essa “coisa” de sustentabilidade uma grande pieguice. Afinal, não estamos em Oslo, né, pessoal?
Para eles é muito penoso saber que agora também precisarão se programar para sair com antecedência de casa. E, o que mais lhes incomoda, é pensar que “Marias e Joãos” vão demorar, talvez, menos tempo para atravessarem a cidade, sentados, também, confortavelmente em um meio de transporte público. Apesar de eles terem dinheiro suficiente para pagar estacionamentos e taxis, eles queriam continuar parando na rua, porque a cidade sempre foi deles. Vagam agora, inconformados, com o fato de outras pessoas se refestelarem assim, do nada, ocupando o seu espaço. E ficam profundamente tristes em se deparar com essa gente comum em seus bairros, porque, afinal, ali não é o lugar deles.
A questão é que, fora da lógica da exclusividade está a maioria da população da cidade e, sendo assim, o prefeito está coberto de razão em destinar o seu governo para aqueles que, de fato, representam São Paulo.
É impressionante como o Brasil ainda mantém, de forma tão arraigada, suas origens coloniais, aristocráticas e coronelistas. Porém, é tão bom quando aparece alguém com coragem de enfrentar e acabar com essa ditadura oligárquica.
São Paulo está tão mais bonita com seus ciclistas, skatistas e afins pelas ruas. Com as pessoas indo e vindo livremente e ocupando o espaço público como se fosse suas casas, porque de fato, ele é!
Haddad representa uma das minhas vontades de voltar a viver em SP um dia. Esse prefeito porreta é a prova de que existe sim muito amor em SP.
*Aina Cruz é é mestre em Tradução e Literatura pela USP e se intitula uma “artesã das palavras”. É redatora, tradutora, roteirista e blogueira. Como pesquisadora leiga das nuances da alma humana, roteirizou o documentário Recalculando Rotas: trajetórias para o amor contemporâneo e idealizou o projeto Toda memória conta uma história