Muito além do marco temporal: conheça os demais retrocessos em direitos indígenas previstos na lei aprovada no Senado

Marco temporal: indígenas acusam bancada ruralista de legislar em causa própria e afrontar Constituição - Câmara dos Deputados

Embora conhecido apenas como PL do marco temporal das terras indígenas, o Projeto de Lei (PL) 2903 esconde retrocessos nos direitos dos povos originários que vão muito além da imposição do critério arbitrário de tempo para validar demarcações.

Entre as consequências mais drásticas – mas não as únicas – da lei aprovada no Senado está a permissão da construção de rodovias, hidrelétricas e outras obras de alto impacto socioambiental em territórios indígenas.

Por isso, organizações indígenas planejam uma campanha para convencer Luiz Inácio Lula da Silva (PT), parlamentares e a opinião pública de que o PL 2903 precisa receber o veto integral do presidente da República.

A lei permite ainda que proprietários de terras questionem a criação de novas terras indígenas e até de territórios já regularizados, além de favorecer a grilagem, pois reconhece títulos de propriedade irregulares que se sobrepõem a áreas indígenas.

Para acentuar o cenário, tudo isso pode ocorrer sem a consulta livre, prévia e informada às comunidades afetadas, um direito previsto na convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e transformado em lei no Brasil.

“É como se eu invadisse a sua casa sem pedir licença. É uma salada de frutas de retrocessos, um frankenstein. Um furacão passando sobre as nossas cabeças. Esperamos que o presidente Lula não sancione”, afirma Eliane Xunakalo, presidenta da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso (FEPOIMT).

Brasil pode retroceder 100 anos nos direitos indígenas

Essas mudanças estão previstas em mais de dez projetos de lei apensados, isto é, anexados ao PL 2903, que foram aprovados de uma só vez pelo Senado. O parlamento pode apensar diferentes proposições legislativas em votação única, desde que as temáticas dos projetos sejam semelhantes.

Nesse caso, a semelhança é que todos retiram direitos dos povos indígenas – alguns assegurados nas Constituições brasileiras há praticamente um século. Resta saber se o presidente Lula irá vetar apenas o marco temporal ou todas as mudanças previstas pelos apensados.

“É cedo para afirmarmos se Lula vai vetar o projeto na íntegra ou de forma parcial. Vamos pedir uma agenda com ele e tentar sensibilizar as bancadas do movimento indígena e a opinião pública para que o presidente faça o veto integral”, disse ao Brasil de Fato Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Um dos direitos mais antigos dos povos indígenas brasileiros ameaçados pelo PL 2903 é o chamado usufruto exclusivo das terras, uma prerrogativa prevista pela primeira vez na Constituição de 1934. Segundo a premissa, os povos devem ser os únicos a se beneficiar dos recursos naturais – florestais, hídricos e minerais. Mas o PL 2903 subverte esse direito ao permitir que fazendeiros façam contratos de produção agrícolas com indígenas.

“PL 2903 também ressuscita o regime de tutela e assimilacionismo, padrões superados pela Constituição de 1988, que negam a identidade dos indígenas e flexibiliza a política indigenista de não contato com povos em isolamento voluntário, além de reformular conceitos constitucionais como a tradicionalidade da ocupação, direito originário e usufruto exclusivo”, acrescenta a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Possível veto presidencial e judicialização: qual o futuro do PL 2903?

No mesmo dia da aprovação do PL 2903, o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), declarou que a lei será vetada por Lula, por contrariar a Constituição e o Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou a inconstitucionalidade do marco temporal no dia 21 de setembro. O presidente tem 15 dias para sancionar ou vetar o projeto de lei.

Se houver o veto presidencial, o PL será devolvido para análise do Congresso em uma sessão conjunta entre deputados e senadores. Nos bastidores, o movimento indígena aposta que a bancada ruralista – a maior e mais influente de todas – irá derrubar os vetos presidenciais, fazendo prevalecer a decisão do Parlamento.

Por trás da provável “guerra de vetos” está a relação conturbada entre Congresso Nacional e STF. Parte dos parlamentares usa o marco temporal para mandar um recado contra o que consideram “ativismo judicial” por parte da Corte. A tensão entre os dois Poderes escalou na medida em que o Supremo passou a definir sobre temas sensíveis aos congressistas, como aborto, descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, além do próprio marco temporal.

Mesmo que Lula vete o marco temporal, e o Congresso derrube os vetos na sequência, juristas dizem que a lei pode não valer imediatamente. O motivo é que o PL 2903 deverá ser alvo de uma ação judicial contestando a validade da lei, já que o marco temporal foi derrubado pelo Supremo. Partidos políticos e a própria Apib podem acionar a Corte contra o PL.

“A própria Constituição diz que uma lei não prejudicará o direito adquirido, portanto, nenhuma lei pode mudar um direito anterior a ela. O Congresso não pode ir em direção contrária ao entendimento do STF”, afirmou ao Brasil de Fato o advogado criminalista, doutor em Ciência Política e mestre em Criminologia e Direito Penal, Fernando Fernandes.

 

 Murilo Pajolla – Redação Brasil de Fato

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