Marcos Rehder: Uma política para economia digital no país do ‘sinal de fumaça’

Twitter/Luciana Santos Presidente Lula e ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos

Desde a metade do mês de janeiro é possível perceber no portal de notícias do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) um resgate da preocupação à sustentabilidade econômica, social e ambiental. É urgente esta consciência de que o investimento do Estado pode priorizar como principal “missão” socorrer as pessoas da miséria e impactos ambientais como geração de demanda que estimule a oferta (e com isso, a inovação para a competição), que escalaram insuportavelmente desde o golpe de 2016 – se não institucional, certamente um golpe político, regressos na construção democrática de mais de 40 anos.

Tais compromissos estão em total consonância tanto com a linha de “economia verde” proposta pelo Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços quanto com as diretrizes do programa de governo Lula-Alckmin e o relatório de transição. O que se pretende com este artigo, considerando alguns elementos específicos da governança para implementação de políticas no contexto 4.0 – que será apresentado já na introdução – , é levantar algumas questões essenciais sobre como o MCTI pretendia enfrentar a principal mudança nas cadeias de valor nos últimos 40 anos, a transformação digital, os caminhos seguidos desde então e que se há de fazer neste primeiro momento para retomar a chamada por Renato Dagnino transição do “Estado herdado” para o “Estado necessário”. Esta nova revolução do capitalismo pode ser tida como irreversível, é integradora de toda a atividade econômica, e está no bojo de parcerias internacionais iniciadas pelo Brasil ainda no governo Dilma Rousseff.

Já é nítida uma agenda científica e tecnológica comprometida com a vulnerabilidade social que se alastrou país afora nos últimos anos, como incentivo à reindustrialização sustentável. A ministra Luciana Santos sinaliza para compromissos com setores produtivos essenciais, como farmacêutica, bioeconomia, reversão da liquidação do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada S.A (Ceitec), deu sinais claros da retomada de um diálogo intenso com a comunidade acadêmica e recuperação de parcerias internacionais estratégicas em pesquisa, em especial com Argentina e China. A Economia 4.0 só faz sentido quando integra e proporciona a governança destes setores importantes para a sociedade (e por isso geram demanda) por dispositivos de rastreamento tomadas de decisão máquina a máquina (M2M), não como um padrão tecnológico em si que se reproduz por inércia, descolado de todo o resto.

Quando se assume como nulo o custo marginal do conhecimento científico e tecnológico pela suposta reprodutividade infinita, neutralizando o problema da escassez – o que em si mesmo não ocorre devido à leis de propriedade intelectual –, tem se a falsa impressão de sua mera geração via investimento público basta como política pública de inovação.

Em publicação do ano passado Aaron B. Frank (RAND Corp) aponta que, como outras estruturas emergentes, conhecimento e tecnologia, mesmo como bens públicos, tendem a se tornar privados, acarretando problemas de coordenação para evitar o esgotamento de seu acesso, por isso o chama de recurso sob risco de ser undergoverned (subgovernança). Aponta quatro fatores para se retomar sua governança visando o bem-estar: 1) em que medida é acessível aos outros agentes em condições desiguais (heterogêneas)? 2) quais regras seriam capazes de coordenar os agentes? 3) como a governança em um contexto afeta outro contexto, como nos jogos múltiplos em rede multigrafo? 4) há uma perspectiva de continuidade da interação capaz de induzir os agentes a suportarem determinadas condições ou restrições?

Em outras palavras, uma efetiva na implementação de uma inovação primordialmente depende do acesso, envolvimento, externalidades e expectativas de retornos no longo prazo que compensem o investimento (demanda).

A complexidade com que estes quatro fatores são reproduzidos no atual contexto e a capacidade de análise de uma infinidade de dados – aos quais os que lucram com uma sociedade injusta e insustentável socioambientalmente também tem acesso e sabem usar – exigem novas tecnologias de planejamento. Robert Axtell (Universidade George Manson) publicou com Doyne Farmer (INET Oxford) um texto para discussão, onde revisa a abordagem da modelagem baseada em agentes, conhecida pelo atual comando do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Ela usa simulação em computador da redes multiagentes heterogêneos em nível big data, permitindo um tipo de análise econômica de política públicas que pensa o bem-estar fora do ótimo paretiano, com previsões das consequências dos comportamentos do agentes num nível agregado (macro), em relações moderadas pelas regras (micro), permitindo analisar a heterogeneidade nas condições de escassez no longo prazo resultantes da emulação. Sendo assim, é especialmente útil para a área de economia digital, dando conta das desigualdades de condições evidentes no Brasil.

No restante deste artigo serão discutidos pontos relevantes para I) uma compreensão dos princípios do atual governo que terão ressonância na atuação do MCTI, II) que pode ser pensada sob o paradigma do planejamento estratégico governamental desenvolvido por Renato Dagnino e que pode ser potencializado pela ABM e III) como este próprio paradigma oferece uma orientação para mitigar o descompasso anômico entre a estratégia brasileira para a transformação digital (2018) e seu projeto original descrito no edital para a contratação do diagnóstico para uma política de internet das coisas (IoT) publicado ainda sob o governo Dilma (março de 2016) e IV) algumas ideias sobre o que pode ser feito dadas as condições do “Estado herdado”.

Como será melhor apresentado na quarta sessão, a “estratégia” prioriza a expansão das tecnologias 4.0 pensando que com isso a assimilação e uso ótimo destas inovações estarão dadas, sem pensar nas várias vulnerabilidades socioeconômicas que reproduzem condições desiguais de acesso e aprendizagem. Nela consta que havia então 69% de domicílios com acesso à banda larga, percentual que um recente levantamento do CETIC estima em 71% em 2021.

Digamos que estes 71% são as pessoas que possuem condições de assimilar a economia digital: a reflexão que aqui se propõem é, em consonância com o projeto de governo atual, sobre como uma política no setor pode ser útil para inclusão econômica socioambientalmente sustentável dos outros 29%, que dificilmente serão incluídos no processo no médio prazo (e a fome tem pressa). Não tem cabimento condenarmos 1/3 da população brasileira à mais esta vulnerabilidade.

Principais compromissos gerais e específicos em PCTI em economia digital do atual governo

Nas diretrizes para o programa de reconstrução e transformação do Brasil 2023-2026, apresentadas como plano de governo da candidatura vitoriosa Lula-Alckmin à Presidência da República, divide-se a gama de prioridades em três eixos temáticos, sobre os quais já foi falado neste mesmo espaço,  que se repetem na organização do documento da equipe de transição. São eles:

•    Desenvolvimento Social e Garantia de Direitos;

•    Desenvolvimento Econômico e Sustentabilidade Socioambiental e Climática e;

•    Defesa da Democracia e Reconstrução do Estado e da Soberania.

No que tange PCTI e, mais especificamente, transformação digital, são nos três eixos prioridades sempre condicionadas à um desenvolvimento econômico direcionado ao combate às vulnerabilidades social e ambiental.

No eixo “Desenvolvimento Social e Garantia de Direitos” o empenho do novo governo se refere aos impactos da transformação digital, priorizando a revisão da legislação das relações de trabalho mediadas por tecnologias, sobretudo a chamada “uberização”. Isso não significa uma rejeição da nova agenda industrial (também agroindustrial, bioeconomica), mas de alavancar a reindustrialização em bases tecnológicas e ambientais, uma economia verde onde haja espaço para cooperativismo, economia solidária, combate à fome e uso sustentável da biodiversidade.

Portanto, atende à garantia de direitos aos que são impedidos de adentrar neste novo “mercado 4.0”. A PCTI precisa oferecer mecanismos para o combate à pobreza e trazer alternativas para os já citados 29% da população, com foco especial no aprimoramento do SUS e instrumentos educacionais capazes de mitigar a gigantesca defasagem pedagógica gerada pela assimetria tecnológica que assistimos durante pandemia.

Quando, no eixo “Desenvolvimento Econômico e Sustentabilidade Socioambiental e Climática”, as “diretrizes” remetem-se a um projeto para as transições digital e ecológica que satisfaçam “dimensões que ultrapassam o mundo da produção”, está-se referindo às dimensões não mercadológicas da mudança. A indução da reindustrialização deve se pautar tanto no investimento em infraestrutura como acompanhado de incentivos fiscais para fatores de produção e produtos com maior valor agregado, tecnologia embarcada e com menores impactos ambientais e sociais, em setores estratégicos como saúde, energia, alimentos e defesa, sobretudo na produção de bens críticos; a PCTI deve botar peso nessas missões.

Deste modo, a reforma objetivando aprimoramento da progressividade tributária, redução da sonegação e da equalização fiscal somada à esta política de desenvolvimento será favorável à agentes privados que investirem nos setores prioritários.

Estes objetivos de sustentabilidade social, econômica e ambiental refletem um forte debate sobre desenvolvimento nacional acentuado após a deposição de Dilma, bem descrito no volume economia pós-pandemia (2020) e sintetizado em seu capítulo final, onde dentre os coautores constam Ester Dweck (ministra de Gestão, professora da UFRJ e referência da abordagem ABM) e Guilherme Mello (secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e professor na Unicamp). Eles defendem dois motores para impulsionar o crescimento: I) a distribuição de renda com inclusão social junto a II) expansão da infraestrutura social e instituições públicas, duas questões que também orientaram o “edital” de 2016.

Sem rejeitar a necessidade de equilíbrio fiscal, criticam o chamado “teto de gastos” na medida em que constrangem direitos sociais, apontando para a concentração dos investimentos públicos em “missões socioambientais”, contando com seus efeitos multiplicadores que induziriam, inclusive, a demanda por tecnologia. É uma visão fortemente inspirada na economista neoschumpeteriana ítalo-americana Mariana Mazzucato, que assume o aumento da produtividade (e da competitividade) como resposta à demanda de produtos essenciais, com fortalecimento de políticas finalísticas.

Quanto à “Defesa da Democracia e Reconstrução do Estado e da Soberania”, um primeiro ponto consiste na recuperação das instâncias de participação policêntricas, que partem do local até chegar ao nacional e internacional (esferas pública e representatividade setorial). Para tal, é preciso também recuperar instrumentos de transparência que permitem acesso à informação em consonância tanto com as garantias de privacidade da LGPD quanto com a neutralidade de redes, aspecto importante para a cidadania e atuação econômica no contexto digital.

Este aprimoramento de mecanismos de governança vinculados à produção e acesso à informação segura, em torno da indução do desenvolvimento orientada por missões socioambientais fornecem as questões bastante importantes para a nova PCTI. No documento de “transição” fica claro que, junto ao aumento no investimento em CT&I, a missão fundamental neste primeiro momento é resgatar a estrutura organizativa do MCTI, sobretudo as instâncias de diálogo e participação com a comunidade científica, inclusive a elaboração do PPA 2024-2027 e a organização de uma nova Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação para repensar uma Estratégia Nacional de CT&I.

Para tal, é importante uma abordagem coerente com a linha política do governo para sistematizar os debates, estabelecimento de estratégia e monitorar microdados em big data para a efetiva execução dos propósitos de mudança; sobretudo pela natureza da área de Transformação Digital.

Uma expansão do Planejamento Estratégico Governamental para o contexto digital

Para adotar mecanismos botton-up na implementação e monitoramento de políticas públicas dentro da concepção de missões socioambientais, integradas tecnologicamente por sistemas nacionais de governança e capazes de impulsionar o desenvolvimento, é importante uma abordagem que parta da gestão estratégica local cujo framework seja compatível com um instrumento capaz de integrar e projetar futuros possíveis em nível macro. O próprio capítulo citado do livro Economia pós-Pandemia cita como uma das referências para implementação de políticas em nível local a metodologia de Planejamento Estratégico Governamental (PEG), de Renato Dagnino, e o intento desta sessão do texto é apresentar sua compatibilidade com a ABM, tomando por referência desta última o já citado trabalho de Axtell e Farmer.

Dagnino desenvolveu o PEG inspirado em Carlos Matus, baseado em conjuntos de jogos interdependentes, multiagentes e repetidos, com informação incompleta. O PEG se divide em dois momentos: a Metodologia de Diagnóstico de Situações (MDS), onde define os elementos de um problema e desenha cadeias de causalidade (fluxograma explicativo), e a Metodologia de Planejamento de Situações (MPS), quando o planejador público estrutura um plano para solucionar tal questão em um projeto dividido em etapas (estabelecendo objetivos e uma matriz operacional). Trata-se de uma proposta para municiar agentes públicos a elaborar políticas públicas capazes de transformar o “Estado Herdado” no que chama de “Estado Necessário”, focando o investimento público ao atendimento do que já foi definido como “missões socioambientais”.

Na MDS ele apresenta uma sequência de procedimentos que vão desde a identificação de uma “situação-problema” até o direcionamento objetivo da participação dos envolvidos na construção da mapas cognitivos (por exemplo, usando Design Thinking em combinação com mapeamento de redes via Net Map). Deve-se chegar à um fluxograma de causas múltiplas e suas variáveis, descrevendo o problema como um sistema complexo, identifica-se os fatores principais, chamados de “nós críticos” e tem-se um conjunto reduzido de jogos (situações) onde o gestor precisa operar.

Selecionados os principais jogos interdependes que conformam o problema, MPS define estratégias de projetos capazes de mitigar o problema. Seus elementos são basicamente os mesmos de um jogo onde há cooperação, incluindo uma infinidade de fatores como confiabilidade, atores envolvidos, poder de realização de cada ator, ações permitidas e resultados. Mais recentemente o autor sintetizou em 8 elementos, conferidos em um trabalho sobre planejamento público e democracia e outro sobre PCTI: I) atores envolvidos, II) projeto político do ator, III) agenda política do ator transformador (problema que quer resolver), IV) processo decisório, V) agenda decisória, VI) poder relativos dos atores, VII) política pública que responda à agenda do ator transformador e VIII) conflitos (sobretudo os latentes).

Twitter/Luciana Santos
Presidente Lula e ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos

Há de se reconhecer que, num contexto de transformação digital, novas questões se lançam para abordagem do PEG, como uma fortíssima ampliação do número de agentes envolvidos nas situações e da interconectividade entre elas, a heterogeneidade de força e acesso à informação entre eles, interações de competição/cooperação com todos estes elementos no longo prazo e mesmo a presença de “tomadores de decisão” não humanos, além do já citado problema de alguns não terem nenhum tipo inserção na nova realidade mas sofrerem suas consequências. Neste sentido, a adoção da combinação do método descrito por Dagnino com técnicas que permitam trabalhar simulações (e Teoria dos Jogos é uma espécie de simulação) com big data sobre milhares agentes heterogêneos em rede, inclusive virtuais, potencializa em grande medida esta ferramenta de implementação de políticas públicas.

Desde os anos 1960 já se faziam simulações de jogos de estratégia em computador, algo que começou a ganhar popularidade na década de 1970 entre cientistas da computação e passou a ser examinado com maior atenção nas ciências sociais aplicadas nos anos 1980, sobretudo a partir de experimentos de Robert Axelrod com Dilema dos Prisioneiros com muitas repetições. O Trabalho de Axtell e Farmer já mencionado aqui reconstrói esta trajetória até os dias atuais, que começou com estudos dispersos e a partir do começo deste século passou a adquirir alguma unidade, tendo a nomenclatura Agent-Based Modelling (ABM) como sua conceituação mais difundida. Os autores resumem a ABM em 5 procedimentos: I) população de agentes que se comportam segundo suas propriedades heterogêneas (valores e vetores); II) especificações comportamentais definidas por regras; III) ambiente resultante das interações em rede (inclusive, em jogos de rede multigrafo, sobrepostos), que provocam mudanças nos agentes e no próprio ambiente; IV) coleta dos dados micro sobre os agentes e macro sobre o agregado e V) descrição gráfica e/ou estatística das mudanças ocorridas nos agentes e no ambiente, identificando as “propriedades emergentes” no sistema. Ou seja, envolve os elemento de um jogo, assim como a MPS.

Altell e Farmer mostram que nos últimos 15 anos muitos economistas reconhecidos mundialmente aderiram a ABM, como Giovanni Dosi, Richard Nelson e os laureados pelo Nobel Joseph Stiglitz e Elinor Ostrom. No Brasil também há uma crescente adesão, como no caso de Esther Dweck, já mencionada Ministra de Gestão. Segundo ela, a busca por trajetórias de desenvolvimento não pode reduzir-se à partir de explicações macro, dado que elas são consequências de interações macro e sem partir destas parecem “efeito sem causa”. Portanto, é necessário ir a um nível micro de maior desagregação para entender como agentes heterogêneos se comportam e tomam decisões, pois muitos fatores que provocam a dinâmica macroeconômica situam-se neste nível. Tal movimento analítico não tem apenas consequências de escopo, mas substitui os grandes modelos totalizantes por um conjunto complexo de equações menores para cada agente, e a análise deixa de consistir em encontrar valores para propriedades conhecidas e passa “instruir” agentes e encontrar as consequências nos sistemas complexos (a “nanoeconomia” de Arrow).

Dado o objetivo deste texto em levantar elementos para, no que tange à Estratégia Brasileira para a Transformação Digital, a superação do “Estado Herdado” em direção a um “Estado Necessário” mais economicamente igualitário e socioambientalmente sustentável, a próxima sessão consistirá num exercício da Metodologia de Diagnóstico de Situações. Começará com uma discussão acerca de discrepâncias entre o que se projetava para a Transformação Digital até 2016 e os rumos tomados na “Estratégia” de 2018, à luz do que Dagnino chama de Anomalia da Política de C&T e sua Atipicidade Periférica. Trata-se de um momento preliminar para assim a construção de modelos preditivos e operacionais via MPS e ABM.

O que se pretendia e o que foi feito na área nos últimos anos

Tendo passado pelos descompassos inerentes ao contexto digital que podem inviabilizar a governança, os objetivos gerais do atual governo junto às prioridades do MCTI para a reconstrução de uma PCTI e tendo tratado de uma abordagem voltada para as transformações necessárias, que se potencializa se levada a cabo em combinação com uma metodologia de governança de dados adequada às extremas interatividade e geração de dados relevantes, tomemos o que esta abordagem, a PEG, tem a dizer sobre a atipicidade nesta área de políticas públicas em países periféricos. Esta será a bússola para nos localizarmos quanto ao que foi feito quanto à Transformação Digital e qual caminho coerente pode ser seguido. Para tal, continuaremos com Dagnino, em seu já mencionado trabalho de 2016 sobre Política Científica & Tecnológica.

As tecnologias inteligência artificial que conectam máquina a máquina já eram tema de debate entre meios produtivo e acadêmico desde pelo menos meados da década de 2000, com o Fórum Brasileiro de IoT. Em 2012 já haviam regulamentações na área, e em 2014 foi criada a Câmara de Gestão e Acompanhamento do Desenvolvimento de Sistemas de Comunicação Máquina a Máquina pelo Ministro das Comunicações Paulo Bernardo, estabelecendo finalmente um canal para elaboração de políticas públicas. Dada a emergência da “Transformação” no cenário internacional, sendo publicadas orientações da OCDE desde 2015, ano em que o Brasil firmou uma parceria com tal instância multilateral preparatório para a entrada do país, esta agenda se tornou fundamental tanto pela forte inserção internacional que o país havia conquistado até então quanto pelos impactos que a Economia Digital fatalmente incorreria para emprego, renda e competitividade no mercado. É uma questão em que por sua própria natureza depende de uma sinergia com a arena de P&D, da eficiência de nossa pesquisa científica em dar respostas às demandas sociais, econômicas e ambientais, e preparar uma sociedade com vulnerabilidades heterogêneas a assimilar recursos tecnológicos para a sobrevivência material: os que admitimos 2/3 de possuem alguma condição de interagir nesta nova realidade; e o 1/3 que não possuem, mas sofrem as consequências desta nova esfera de interação.

O autor aborda a atipicidade das políticas em CT&I dos governos de esquerda brasileiros, apontando que elas pouco diferiram das propostas estavam imersas em um modelo cognitivo dominante “importado”, que seleciona as prioridades de pesquisa em abordagens concernentes com contextos econômicos e sociais dos países avançados: por isso a dificuldade em promover a conhecida integração Universidade-Empresa. Recorrendo à lições do Pensamento Latino-americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PLACTS), ele aponta três causas que levam a isso:

I.    O investimento no desenvolvimento de inovação não é uma demanda relevante no modelo cognitivo de nossa elite, por isso só funcionou em estatais;

II. Nossos agentes econômicos preferem apropriar inovação importada (cá para nós, porque leva à aproximação com grandes corporações que abrem portas no mercado internacional) e;

III. A estrutura socioeconômica latino-americana é extremamente excludente, tanto para população vulnerável quanto para novos agentes econômicos, tendo a falta de oportunidade para a primeira e a extrema oligopolização para os segundos um efeito de desestímulo para assimilar inovação dado que a competitividade é muito restrita.

Nos conceitos da MPS, em relação ao primeiro ponto os agentes transformadores não conseguem fazer com que seus projetos mantenha coerência com seu projeto político porque a cultura das agendas decisórias, pautadas pela comunidade científica, da área está imersa nesta anomalia cognitiva, causada pela própria estrutura econômica restritiva. Quanto a motivação dos empresários (pontos “II” e “II”), Dagnino traz dados da PINTEC/IBGE relativos a 1998-2008 (logicamente, uma continuidade desta reflexão carece de dados novos) que traduzem bem o desinteresse em desenvolver inovação local: neste período, o número de empresas que se declaram inovadoras reduziu de 33 para 11% e as que acham P&D relevante diminuiu de 34 para 12%, mas as que declararam adquirir equipamentos inovadores continuou em 80% ao longo do período; só 12% apontaram que não inovam por falta de financiamento e 70% disseram que foi por falta de condições de mercado mesmo e; das 11% que inovam, só 7% se relacionavam com universidades. Em suma, a falta de oportunidade reduzia a 11% do mercado interessado em inovação, e mesmo entre estes só 7% dava credibilidade à agenda de pesquisa das universidades (seu sistema cognitivo): se houvesse competitividade orientada por  demandas essenciais (por inovação e consumo, tal qual propõem as linhas gerais do novo governo), uma pressão sobre a agenda acadêmica poderia provocar mudanças na agenda acadêmica.

Isso aponta como prioridade para a elaboração de uma estratégia de Transformação Digital as demandas que esta mudança provoca, sobretudo as que acentuam a vulnerabilidade. Esta preocupação estava razoavelmente presente na Chamada Pública BNDES/FEP Prospecção nº 01/2016: Estudo técnico para diagnóstico e proposição de políticas públicas no tema Internet das Coisas (IoT), resultado dos debates na Câmara de Gestão e Acompanhamento do Desenvolvimento de Sistemas de Comunicação Máquina a Máquina. Neste edital, vencido pelo consórcio McKinsey/CPqD/Pereira Neto & Macedo Adv., previa-se dois objetivos: “avaliar o estágio e as perspectivas de implantação da IoT no mundo e no país, com vistas à proposição de políticas públicas que potencializem tanto os impactos econômicos, tecnológicos e produtivos, como aqueles ligados ao bem-estar da sociedade brasileira.”. Em outras palavras, metade das questões fundamentais para uma “Estratégia” giraria em torno de como a Transformação Digital promove ou ameaça a qualidade de vida da população, desde a exclusão digital até a vulnerabilidade no trabalho; só metade estaria voltada diretamente ao mercado, assumindo o pressuposto de que este se move pela demanda. Como se verá mais adiante, pouco ou nada se falou sobre combate à pobreza e cuidados com quem não irá se integrar diretamente à transformação no curto e médio prazo.

Pode-se dizer que o resultado deste diagnóstico, a Estratégia Brasileira para a Transformação Digital (2018), levou em consideração todos os aspectos mercadológicos e relativos à política Internacional relevantes (primeiro objetivo), mas nada diz a respeito de vulnerabilidade social. Aliás, quando fala dos stakeholders ouvidos em consulta pública (para o “Diagnóstico” e para a “Estratégia”), reduz-se a representantes de entidades associativas patronais no setor digital e lideranças do meio acadêmico, nada de sindicatos ou movimentos sociais; em outras palavras, priorizou priorizar o diálogo entre atores que não se importam entre si, aparentemente deu pouca importância em canalizar as prioridades do setor produtivo local (sobretudo, os essenciais) e muito menos deu espaço para participação de quem sofre as piores externalidades e que justificariam investimentos indutivos públicos (nem sequer há um capítulo no volume sobre impactos sociais, isolado que seja). Estipula um modelo de governança entre poucos e objetivos totalmente deslocados da realidade nacional (nada tem a dizer para 1/3 da sociedade, no máximo um “você que corra, transformação está aí”).

Seria injusto dizer que a Política Nacional de IoT (2019) desprestigiou totalmente em suas câmaras setoriais (Industria 4.0, Agro 4.0, Cidades 4.0, Saúde 4.0 e mais tarde Turismo 4.0) os impactos heterogêneos sobre a sociedade. Principalmente no que concerne a Cidades 4.0, cujo resultado foi a Carta Brasileira Para Cidades Inteligentes, houve sim preocupações quanto o acesso à cidade e também sobre as conexões verticais e horizontais que envolvem a boa implementação de políticas sociais no âmbito federativo, sobretudo porque conseguiu se desvincular da linha reacionária do último governo federal e se ancorou na parceria com a Agência de Cooperação Alemã – GIZ. Entretanto, como em quase tudo que envolveu o MCTI, mais cartas de intenções que projetos executados, carentes de revisões que os tornem relevantes tanto para a demanda quanto para os ofertadores de bens essenciais.

Os caminhos seguidos pela nossa “inserção” na Economia Digital, desviados à partir de 2016, vão inclusive contra as orientações da OCDE, conforme consta no já citado texto derradeiro de Economia pós-Pandemia. Nele frisa-se que no próprio documento sobre Transição Digital The Future of Work (2019), da OCDE, consta a necessidade de políticas estatais na área direcionadas à redução da desigualdade e da defasagem educacional, proteção social e direitos básicos fundamentais (como trabalhistas). Ou seja: mesmo a OCDE, grande fetiche da atual direita, concorda com a importante missão de induzir o desenvolvimento através de políticas de combate à pobreza, inclusive na Economia 4.0.

Considerações finais

Em torno dos desafios governativos do contexto digital, de acordo com os 4 fatores fundamentais para retomada da coordenação em ambientes subgovernados apontados por Aaron B. Frank, a discussão sobre como começar uma PCTI em Transformação Digital coerente com os propósitos gerais do atual governo, sem que se incorra às anomalias apontadas por Dagnino, acredito ser possível “começar a conversa” apontando 4 “nós críticos” respectivos a cada fator:

1. Em que medida é acessível aos outros agentes em condições desiguais (heterogêneas)? Não desconsiderando a heterogeneidade competitiva entre os que estão aptos a participar do mercado e dos benefícios sociais da Economia Digital, ter em mãos um diagnóstico claro da exclusão digital em CNPJ’s e CPF’s, entendê-los como demanda importante para pensar políticas que não apenas pensem a inclusão digital, mas como mitigar a condição de vulnerabilidade destes atores, principalmente os que dificilmente saíram desta condição no curto e médio prazo. Segundo a “Estratégia” de 2018, este tema teve um grupo de discussão, cujos resultados não foram divulgados no relatório principal.

2. Quais regras seriam capazes de coordenar os agentes? Partindo do diagnóstico das diversas exclusões e vulnerabilidades que resultam em injustiças heterogêneas ou exclusões provocadas pela Economia Digital, promover uma revisão da “Estratégia” e da Política Nacional de IoT, alterando regras e prioridades, incluindo “missões” voltadas para o “1/3” da população e do mercado não diretamente envolvidos ou incluídos na “Transformação”

3. Como a governança em um contexto afeta outro contexto, como nos jogos múltiplos em rede multigrafo? Aprimorar métodos de análise e planejamento das ações adaptados à infinidade de jogos, redes e informações sobrepostas, e uma sugestão é o PEG “turbinado” pelo potencial da ABM, o que permitiria uma melhor governança, capaz de processar a informação para planejar a transformação do “Estado herdado” em “Estado necessário”

4. Há uma perspectiva de continuidade da interação capaz de induzir os agentes a suportarem determinadas condições ou restrições? Desenvolvendo-se uma PCTI voltada para “demandas emergentes” atendidas por indução do investimento público, junto à disponibilização de mecanismos de governança dos dados (o que dá segurança para o investimento), é possível o surgimento de iniciativas econômicas que se motivem em gastar para desenvolver pesquisa e induzir o meio científico a adotar agendas de pesquisa próprias à realidade periférica do Brasil, trazendo soluções para nossos problemas específicos; assim CT&I atrairia o interesse do mercado e da aprendizagem.

Como foi dito desde o início do texto, o objetivo aqui era apenas apontar algumas questões que podem ajudar a repensar agendas para o próximo PPA, depois de 6 anos de, no mínimo, desorientação. São quatro elementos que integram nossa atividade de pesquisa às demandas sociais, que podem gerar alternativas de negócios e bem estar para o que realmente interessa, no sentido de alimentar um mercado interno.

As recentes políticas de inovação, incluindo em Economia Digital, parecem longe de ter aumentado a produtividade do trabalho nos mais diversos setores produtivos, parece alheios a eles. O mercado digital brasileiro não produz hardware embarcado em máquinas, consistindo em um monte de startups produtoras de aplicativos de relacionamento, vendas e transporte, que dormem sonhando com unicórnios. Um bom começo pode ser um olhar mais atento aos resultados dos trabalhos da Câmara Cidades 4.0, em sua Carta Brasileira para Cidades Inteligentes, onde conecta-se urgências sociais e sistemas verticais e horizontais de políticas às inovações digitais. Há muito trabalho adiante, e certamente seria coerente com o começo de trabalho do MCTI e com as propostas do novo governo.

(*) Marcos Rehder Batista é sociólogo, pesquisador do NEA+ (IE-Unicamp) e do GVceapg (EAESP-FGV), coordenador adjunto de articulação política do “Direitos Já! Fórum pela Democracia”.

Publicado originalmente no OperaMundi

Posts recentes:

Arquivos

Pular para o conteúdo