Fernando Haddad: Federação em frangalhos

“Governadores se queixam de arrogância de Doria”. Esse foi o título de uma reportagem sobre o incômodo que as declarações do governador de SP sobre vacinação causaram aos seus pares. O governador de Goiás foi enfático: “não posso admitir que um prefeito do meu estado tenha sido convidado para se cadastrar no governo de São Paulo para receber a vacina. Isso é um constrangimento para nós, governadores”. Outros governadores, nos bastidores, teriam manifestado a mesma contrariedade. A intenção de quem acelera pode ser atropelar.

O federalismo também passa por uma crise no Brasil. Historicamente, a instituição sempre foi controversa. No século 19, houve quem defendesse uma monarquia federalista para impedir a proclamação da república como concessão às demandas das oligarquias regionais. Machado de Assis, numa crônica, chegou a sugerir que “deveria ser fácil provar que o Brasil é menos uma monarquia constitucional do que uma oligarquia absoluta”.

Constituição de 1988 foi, nesse particular, feliz em estabelecer as competências das três esferas de governo e, ainda que tenha havido disputas em torno do fundo público nos mais de 30 anos de vigência da Carta, a relação entre os entes federados e a União durante a Nova República vinha transcorrendo em relativa harmonia.

Bolsonaro não poderia deixar passar a oportunidade de abalar também esse princípio constitucional. O mais estridente conflito com os poderes da República (Congresso e STF) deixou menos evidente o conflito federativo que ele estabeleceu desde a primeira hora com os governadores, em especial do Nordeste.

O preço da disputa política se conta hoje em vidas. Entre os principais contendores, o presidente, de um lado, o governador de São Paulo, de outro, não há inocentes. A disputa em torno da vacina esconde as ambições pessoais mais mesquinhas. A cidade de São Paulo, por exemplo, registrou, entre 29/11 e 5/12, a maior média de mortes diárias por Covid-19 das dez semanas precedentes –309 vidas perdidas naquela semana, um avião inteiro. Durante a eleição, os governos municipal e estadual simplesmente omitiram a informação da população. Quantas vidas isso custou? A resposta não parece interessar mais a ninguém.

O único exemplo edificante deste período foi a criação do consórcio do Nordeste. Naquele ambiente, as vaidades foram deixadas de lado em proveito da cooperação federativa e da geração de bem-estar social.

A sóbria unidade dos governadores será essencial para aplacar o obscurantismo federal com o apoio do Congresso e STF. Não é hora de oportunismo, mas de trabalhar pela imunização.

Fernando Haddad é professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.

Artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo.

Posts recentes:

Arquivos

Pular para o conteúdo