EL PAÍS: “A eleição serviu de desculpa para não tomar medidas contra a crise hídrica”

Marussia Whately, consultora na área de recursos hídricos, começou a desenrolar um novelo quando percebeu como a sociedade, excluída na crise hídrica de São Paulo, queria participar das soluções, mas não estava organizada. Junto ao Instituto Socioambiental, em parceria com a organização Cidade Democrática e outras 23 ONG’s, Whately começou em setembro a mapear as propostas de 281 especialistas, em mais de 60 cidades. E em pouco mais de um mês nascia a Aliança pela Água, um guarda-chuva que acolhe de fotógrafos, a advogados, passando por estudiosos do tema e gigantes como os grupos WWF, TNC e Greenpeace. Todos eles querem que sua voz se ouça também durante a estiagem. “A falta de diálogo e de informação tem sido importante nesta crise”, lamenta Whately. A medida mais urgente do grupo é conseguir a criação de um comitê de crise, com ampla participação das prefeituras, o Estado e a sociedade, para lidar com as regiões em situação mais crítica de uma forma mais transparente.

Pergunta. Como São Paulo chegou a esta crise hídrica?

Resposta. Houve uma combinação de quatro fatores. Um é o fator climático. Realmente este ano a gente vive uma estiagem severa em boa parte do Sudeste do Brasil e principalmente na região do Sistema Cantareira que já sofre três verões com falta de chuva. Outra questão é o desrespeito às fontes de água de São Paulo que se encontram em uma situação de degradação ambiental, principalmente por conta da ocupação urbana – como nos mananciais de Billing e Guarapiranga– e o desmatamento do entorno das represas. Um terceiro fator é que a gestão da água tem como base fontes inesgotáveis, quando a água é um recurso cada vez mais escasso. A falta de diálogo e de informação também tem sido importante. Se você tem uma crise o primeiro que você tem que fazer é assumir que tem uma crise e discutir com diferentes agentes como resolvê-la. Nem a sociedade nem os comitês das bacias foram ouvidos. Mas a esses quatro fatores se soma mais um: a eleição. Ela coincidiu com boa parte do período de estiagem e serviu como desculpa para não tomar medidas, como multas para uso abusivo de água. O resultado de tudo isto é a pior crise hídrica da história de São Paulo, e talvez do Brasil, e não está necessariamente em vias de acabar.
P. De quanto tempo estaríamos falando?

R. Vai depender de como serão as chuvas nos próximos anos e também da manutenção das medidas de redução de consumo. Se olharmos para o passado recente é possível ter uma ideia de tempo. No final de 2003 o volume do Sistema Cantareira chegou a 1% e somente em 2009 os níveis voltaram a ficar próximos de 80%. Considerando que a situação agora é muito mais grave, o tempo de recuperação deve ser semelhante ou até mais longo.

P. Houve um problema de planejamento em São Paulo?

R. Não houve. O planejamento que existe tem grandes equívocos porque está baseado em uma oferta infinita de água. O planejamento está em xeque no momento em que não estava preparado para esta crise. Os investimentos não têm estado à altura em questão de perdas e vazamentos, por exemplo. Qual é que a grande esperança, hoje? Rezar para chover.

P. Qual é sua avaliação da gestão da crise por parte do Governo de São Paulo?

R. O Governo cometeu uma série de erros. Minimizou o tamanho da crise e não informou nem informa devidamente a população sobre sua dimensão. As medidas para que os cidadãos reduzissem sua conta consumo demoraram muito. E outras medidas como a redução da pressão da rede, embora suponha uma economia grande, acaba sendo um tipo de racionamento. É uma medida necessária, mas fazer isso sem informar, traz problemas: uma coisa é ficar sem água e outra é não ter água de surpresa. Faltam também medidas claras que indiquem como os grandes consumidores de água, como a indústria, vão reduzir seu consumo e precisa haver uma regulação para garantir a segurança e qualidade do consumo de todas aquelas pessoas que hoje estão procurando água por conta própria, em poços por exemplo. É fundamental que a gestão desta crise envolva o Governo, a Sabesp, secretarias estaduais, vigilância sanitária e Defesa Civil para que trabalhem de forma coordenada. Isso não está acontecendo.

    Começamos a tomar consciência da gravidade do problema quando vivemos situações um pouco surrealistas

P. E a Sabesp? Deve ser sua gestão avaliada de forma separada ao Governo do Estado?

R. É importante sim separar a gestão da empresa do Governo. É uma companhia de capital misto que não esteve à altura dos compromissos feitos durante a outorga de 10 anos atrás. Na Cantareira faltaram investimentos para diminuir a dependência da população do sistema. Só agora, com a diminuição de pressão e bônus, conseguiram reduzir o consumo, além de ter retirado água de outras represas que estão diminuindo muito rapidamente. Os investimentos de recuperação do entorno das represas e áreas degradadas também foram praticamente inexistentes. É uma empresa que tem como principal insumo a água que vem desses lugares e não traduz isso em investimento para cuidá-los.

P. A Sabesp argumenta que conseguiu reduzir o número de consumidores que dependem da Cantareira de 8 para 6 milhões.

R. Uma coisa é o compromisso de gestão que ela tinha com a outorga, e outra, as medidas emergenciais que teve que tomar pela crise.

P. Acredita que o abastecimento de água está ameaçado?

R. O abastecimento se encontra, sim, ameaçado. A crise deste ano é muito grave, chegamos agora no final do período de estiagem, e os mananciais estão em uma situação alarmante. Já quase usamos a primeira cota do volume morto, agora vamos para a segunda. Em relação ao nível útil do Sistema estamos em -18%. Passamos um ano muito severo, e é provável que a redução da pressão da rede continue, e precisamos de outras medidas que nos permitam passar pelo período de estiagem do ano que vem, que vai precisar de mais atenção. Se este verão não chove na média, vamos ter que monitorar de perto o comportamento dos mananciais porque podem chegar a uma situação pior do que estão agora.

P. Como São Paulo tem protegido seus recursos hídricos, mananciais, rios… A descontaminação do Rio Tietê poderia adicionar mais um recurso de abastecimento à população?

R. A situação das fontes de água em São Paulo é uma reflexo sobre a questão da água no Brasil. O país tem 12% da água superficial do planeta e isso nos dá a falsa impressão de que temos uma situação confortável. Só que 80% dessa água está na Amazônia, enquanto 80% da população está no Sudeste do país. Em São Paulo, vivemos processos acelerados de uso e degradação da água que colocam em risco o abastecimento urbano do Estado. Os serviços de saneamento estão ainda muito atrasados, principalmente no tratamento de esgoto e, portanto, com alto índice de contaminação. A Agência Nacional da Água fez um relatório no qual afirma que 44% dos pontos de monitoramento da qualidade da água estão em estado ruim o péssimo. Vivemos também a poluição pelo uso indiscriminado de fertilizantes, mais de 50% dos reservatórios do Brasil já apresentam algum grau de eutrofização [um excesso de nutrientes que provoca o aumento de algas que acabam consumido o oxigênio e provocando a morte e decomposição de muitos organismos, diminuindo a qualidade da água]. Pois 29% desses reservatórios têm um grau alto de eutrofização, é um cenário grave.

P. E São Paulo?

R. No caso específico de São Paulo temos os mananciais que abastecem a região com diferentes estados de degradação. Há mais de 20 anos que se investe na recuperação do Tietê e Guarapiranga e essa região continua com ocupações urbanas ainda sem esgoto sanitário. A ocupação urbana continua, assim como a implantação de grandes infraestruturas acima dos mananciais como o Rodoanel, que supõe um impacto enorme. A ocupação é direcionada para cima dos mananciais, quando deveria ser o contrário. E no caso do Cantareira, a questão mais complexa e urgente é a recuperação da vegetação, porque o Sistema esta praticamente desmatado.

P. O que tem revelado a falta de água?

R. A fragilidade do nosso modelo de desenvolvimento. A água é um recurso fundamental para qualquer atividade econômica. Na cidade de Itu a falta de água impacta na dignidade das pessoas, inviabiliza a atividade econômica, depois de dez dias sem água, se você tem um restaurante, você tem que fechar. Começamos a tomar consciência da gravidade do problema quando vivemos situações um pouco surrealistas de ver enchentes na porta de casa, quando não sai água na torneira. Este é um momento de aprendizado, sou otimista em relação a isso, o tamanho da nossa vulnerabilidade diante da falta de água é gigantesco.

P. Qual responsabilidade temos nós nesta crise?

R. A crise é consequência de vários fatores e sua saída será fruto também de vários fatores. As pessoas têm que identificar as diferentes responsabilidades da Sabesp, do Governo, das prefeituras, mas há também responsabilidade da sociedade. Atitudes de consumo responsável são fundamentais neste momento. Mas outra responsabilidade é cobrar e acompanhar a construção de medidas que garantam, de fato, um futuro seguro e sustentável para a água. Não adianta fechar a torneira e não cobrar responsabilidades e medidas, por exemplo, para que grandes consumidores de água, como a indústria, economizem.

P. Qual é sua opinião sobre a decisão do governador, recentemente anunciada, de reutilizar água do esgoto?

R. A proposta é mais uma prova do modelo equivocado de gestão da crise da água em São Paulo. Ao invés de investir em soluções para redução de consumo, como o estabelecimento de metas de redução para grandes consumidores (os contratos de demanda firme que a Sabesp possui para faixas de consumo de 500.000 litros por mês) ou investimento em reuso para fins menos nobres, a proposta é tratar o esgoto e lançar na represa de Guarapiranga para abastecer a população. Ou seja, ao invés de evitar o lançamento de esgotos, o Governo sinaliza o seguinte: “podem gerar esgoto nas áreas de mananciais, que nós tratamos e devolvemos para a população beber”.

Atualmente a principal fonte de poluição da Guarapiranga é o lançamento de esgotos urbanos da ocupação de seu entorno, parte lançado diretamente, parte lançado pelas redes de coleta de esgotos existentes na região e que ainda não são encaminhados para tratamento pela Sabesp. Além de ser muito “criativa”, a proposta é uma surpresa, uma vez que não está prevista nas diversas obras para ampliar a água previstas no Plano Diretor de Abastecimento da Macrometrópole Paulista. Ao que tudo indica, não foi discutida com a sociedade.

Fonte: El País

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