Combate à fome regrediu desde o golpe contra Dilma

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Um grupo de mais de 30 pesquisadores e ativistas sociais se reuniu em torno do histórico livro Geografia da Fome, do cientista Josué de Castro, para comparar o Brasil de 1946 com o de 2021. Entre as constatações debatidas em seminário da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), está a de que o combate à fome e a miséria sofreu dura regressão desde o golpe contra Dilma Rousseff, em 2016.

O seminário ‘Revisitando Geografia da Fome 75 anos depois: as transformações nos sistemas alimentares e os impactos na saúde, meio ambiente e mudanças climáticas’ foi organizado pela Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis da FSP/USP, de 29 de novembro a 2 de dezembro. Os acadêmicos buscavam recuperar o debate proposto pelo geógrafo em seu livro, lançado há 75 anos, para revisitar a temática sob múltiplas dimensões.

Uma das premissas de Josué de Castro – a de que a fome é uma questão política, e avanços e recuos no seu combate são consequência direta do modelo econômico – se concretizou no desmonte de políticas públicas patrocinado pela “ponte para o futuro” do usurpador Michel Temer e agravado por Jair Bolsonaro e seu “posto ipiranga”.

A partir de indicadores estatísticos produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foi possível identificar os avanços e recuos mencionados pelo geógrafo. Desigualdades regionais, pouca diversidade na alimentação e dificuldade de acesso à comida por uma parcela da população permanecem, observaram os acadêmicos, mas décadas de lutas sociais convergiram nos avanços obtidos durantes as gestões petistas, hoje cientificamente quantificados.

Medida desde 1975, a evolução da desnutrição infantil, indicador histórico mais constante e confiável para acompanhar a evolução da fome no país até a criação da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), alcançou o patamar mais baixo da série histórica em 2006, sob ações consolidadas em programas como o Fome Zero.

Dados coletados em 2019, porém, mostram que as crises econômicas e, sobretudo, o progressivo desmonte de políticas de assistência, impediram que a desnutrição continuasse em declínio no país.

Mais da metade da população sofre com insegurança alimentar

Com a introdução da EBIA, em 2004, a forma de mensurar a fome e a falta de acesso a alimentos no Brasil mudou e passou a incorporar questões como as experiências pessoais e as percepções que cada família tem sobre a própria alimentação, como a preocupação com falta de alimentos em curto prazo ou sobre não ter dinheiro suficiente para garantir comida variada e saudável.

Conforme as respostas, cada domicílio pesquisado é classificado em um de quatro estados de segurança alimentar. Eles vão da segurança até a insegurança grave, quando alimentos já faltam ou estão na iminência de faltar.

Esses dados começaram a ser coletados justamente quando políticas públicas eficientes começavam a produzir resultados. Em 2004, 65% da população estava em situação de segurança alimentar; 14% da população, em insegurança alimentar leve; 12%, em insegurança alimentar moderada e 10%, em insegurança alimentar grave.

Na medição seguinte, de 2009, a quantidade de pessoas em segurança alimentar aumentou para 70%. Enquanto a insegurança alimentar leve subiu um pouco, houve redução especialmente significativa na insegurança alimentar moderada e na insegurança alimentar grave.

No intervalo entre 2009 e 2013, a insegurança alimentar caiu ainda mais. Quase três quartos da população estava em segurança alimentar, e a queda tinha ocorrido em todos os segmentos de insegurança. Uma década depois do início da série histórica, a insegurança alimentar chegava ao patamar mais baixo já registrado.

Na medição seguinte, feita entre 2017 e 2018, o cenário começou a se inverter. O percentual de pessoas em segurança alimentar caiu abruptamente, ficando abaixo do patamar registrado em 2004. A redução do investimento em serviços públicos e as crises do período tiveram efeitos rápidos na qualidade da alimentação da população.

Em 2020, a pandemia de Covid-19 se somou ao desmonte dos programas sociais e intensificou o aumento da fome, que já ocorria de forma rápida. Dados mais recentes mostram que, pela primeira vez desde o início da série histórica, há mais brasileiros em situação de insegurança alimentar do que em segurança. Quase 10% população do país convivem com a insegurança grave, e 55% têm algum grau de insegurança.

Citado no seminário, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) da Organização das Nações Unidas (ONU) revelou que o aumento da fome em todo o mundo, e também no Brasil, pode ser explicado por outros motivos além do coronavírus. Entre eles, conflitos, mudanças climáticas, alta de preços de combustíveis, fertilizantes e sementes, além dos sistemas de produção e de distribuição de alimentos.

Desmantelamento institucional

O agravamento da situação pela crise do coronavírus ocorreu num momento em que, no Brasil, as estruturas para o enfrentamento à fome vinham sendo enfraquecidas e desmontadas. O marco inicial foi a aprovação, no final de 2016, da Emenda Constitucional (PEC) 95/2016, que impôs por 20 anos tetos para os gastos públicos, imediatamente comprometendo a promoção de políticas sociais.

Além disso, em um de seus primeiros atos, ainda em janeiro de 2019, Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão responsável por coordenar os programas federais ligados à segurança alimentar e principal meio de interlocução do Estado com os movimentos sociais do setor.

Programas importantes de incentivo à agricultura familiar – responsável por boa parte da comida que chega à mesa das famílias brasileiras – foram extintos ou esvaziados. Entre eles, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Mesmo o Bolsa Família foi terminado, desassistindo 44 milhões de beneficiários, entre os quais 20 milhões de crianças e adolescentes. Entre os méritos do programa está a redução de 51,4% na desnutrição infantil entre as famílias beneficiárias (o índice caiu de 17,5% em 2008 para 8,5% em 2012).

O sucesso dessas políticas públicas, hoje extintas ou enfraquecidas, fez com que, em 2014, o Brasil deixasse de figurar no Mapa da Fome da ONU. Naquele ano, menos de 5% da população estava em situação de insegurança alimentar grave. Entre 2002 e 2013, o número de brasileiros em situação de subalimentação havia caído em 82%.

Ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome durante o governo Dilma Rousseff, Tereza Campello encerrou o seminário da Cátedra Josué de Castro pontuando quatro grandes acordos que o evento apresentou. O primeiro é que a fome é política e o Brasil tem abundâncias. O segundo é que as desigualdades são entrecruzadas com a agenda dos sistemas alimentares e da fome.

Em terceiro, ela afirmou que a expansão da produção e a modernização da agricultura se deu mantendo e aprofundando a concentração fundiária, com perda de biodiversidade e geração de crise climática e sem compromisso com a produção de comida para o povo. Por fim, Teresa salientou a importância do papel do Estado como regulador e ator para reversão da situação, por meio de políticas públicas pactuadas com a sociedade.

“Nós queremos abrir com esse seminário um processo. Estamos construindo um documento de forma coletiva, com o grupo da Cátedra, que são mais de 30 pesquisadores e ativistas, com um conjunto de pessoas que se somaram ao longo desse processo”, revelou a ex-ministra. “O sucesso desse seminário tem muito mais a ver com a gente ter conseguido levantar essas questões, organizar aquilo que a gente tem acordo e se juntar para construir coletivamente uma narrativa.”

Para Tereza Campello, “é possível uma nova geografia para esse país, sem fome, com desenvolvimento, com inclusão, com produção de alimentos e com o país garantindo o direito humano à alimentação”.

Da Redação, com informações de FSP/USP

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