No momento histórico atual, no Brasil e no mundo, a vida, enquanto valor a ser defendido, assumiu seu momento mais relevante.Neste sentido, nestas circunstâncias excepcionais de sobrevivência, há um dilema posto: se sairmos às ruas em manifestações corre-se o risco de contrair a Covid-19, se ficarmos em casa, talvez não haja contaminação pelo novo coronavírus, mas assim não faremos potentes manifestações.
Desta maneira, também no Brasil, muitos encontraram uma espécie de terceira via, que é fazer o uso engajado das redes sociais – e esta apropriação e politização do campo aberto pela inovação tecnológica, é sem dúvida importante, mas é certo, que é insuficiente para resolver este impasse, que ainda vigora no exercício do mandato de um presidente genocida declarado.
Além disso, as redes sociais funcionam como um alento às pessoas, que a si mesmas confessam, que fazem o que é possível ser feito considerando-se as limitações impostas, pelas circunstâncias dadas.
Não é só. Estas três fases: a insatisfação, a indignação e a revolta, que nas ruas, aos poucos, naturalmente assim, evoluiriam; nas redes sociais, porém, são obstruídas já no nascedouro da possibilidade de tornarem-se reais e se desenvolvem todas apenas no âmbito restrito da virtualidade.
Assim, o internauta opera como que uma catarse, que ao mesmo tempo, o alivia e o conforta, ao criar-se a ilusão de que o mundo virtual é o mesmo mundo real apenas transformado no(a) front(e) de um monitor.
Daí que, o engajamento nas redes é, no fundo, só um simulacro de disputa política que necessariamente, deve ocorrer ao ar livre, mas tal simulacro tem, ao menos, penso, a virtude de acontecer por meio da influência exercida em espectro mais abrangente de pessoas, grupos ou populações inteiras e a priori, de qualquer forma, de modo muito insuficiente (ainda que, na era tecnológica, democratize-se a produção e distribuição das ideias em escala industrial).
O uso da linguagem também é outro; frases concisas, de apreensão imediata em um ambiente que flui no tempo instantâneo e que faz necessária a reinvenção permanente da mensagem, que sempre deve ser reciclada para manter a sua atualidade perene.
Logo, a tecnologia foi projetada para mudar a lógica do confronto ideológico, mas, observo: se ela não for compreendida apenas como um meio de luta, e não um fim em si, então, será indevidamente manejada e esta simplificação metodológica do embate irá resultar na desocupação do espaço público como território privilegiado de transformação social e, por meio do hábito digital já instalado, haverá a suposta e legítima precedência do espaço privado sobre o público.
Com isso, o espaço geográfico das mudanças, cada vez mais, desloca-se das ruas para os domicílios; e assim, não só se individualiza o questionamento da ordem vigente, mas também fragmenta-se e, com isso, se enfraquece o coletivo, ao transferir exclusivamente para a comodidade do interior das propriedades o território da luta política.
Enquanto isso, os engenheiros do capital privatizam o mundo real e, simultaneamente, transferem a disputa política(coletiva)do território público, para a virtualidade fragmentada(individual) que o espaço privado abriga.
E, aqui, é preciso ser franco até a medula, o ativismo digital – útil, reitero – é preciso, porém, ser adotado com o distanciamento necessário, a fim de que seus assíduos praticantes não se enredem nos perigos que das redes advêm e sejam, enfim, contaminados com aquela estreita presunção, de que o recurso tecnológico de uso privado venha substituir a luta pública coletiva.
Com efeito, tal ponderação assenta-se no fato, historicamente conhecido, de que os donos do poder sempre buscaram prescindir da participação popular ou intentaram manipular esta força social para atender seus interesses dominantes de classe.
O silêncio nas praças públicas, o esvaziamento das ruas, a revolta virtual fugaz no território privado, a revolução fragmentada feita no espaço domiciliar, a rebeldia individual confinada entre quatro paredes; a prisão das redes simulando condutas libertárias é o mais novo produto do capital; a mais recente obra de engenharia concebida para ser um instrumento de dominação total das massas: cuidem-se!
Não bastasse isto: a pandemia.O medo da morte pelo contágio viral.O fator biológico que reitera o confinamento já tornado hábito pelo fator tecnológico.
O isolamento do mundo no mundo privado, agora, não pelo conforto que proporciona, mas, segundo alguns, tornado radicalmente necessário para a preservação da vida.
E, novamente, o esvaziamento das ruas, o silêncio das praças, o refúgio nas propriedades privadas, o espaço domiciliar como redenção.
Mas, a esta revolução tecnológica operada pelo capital; a esta subversão do espaço privado sobre o público; a esta rebeldia do domicílio sobre as praças; a revolta do indivíduo confinado entre quatro paredes sobre o sujeito coletivo liberto das limitações espaciais; a esta insurgência do mundo virtual sobre o mundo real, a todas estas peças das engrenagens do domínio capitalista, proclamo com o rugido da fera dialética que habita em meu pensamento, que a transgressão, hoje, mais do que nunca, consiste em dar crédito irrestrito a ciência.
De acordo com os protocolos de segurança sanitária, até a vacina ser desenvolvida há mecanismos de proteção contra o contágio pelo novo coronavírus.
A ciência esclarece e é necessário confiar nela; na ciência, antes, durante e depois do desenvolvimento da vacina, reside a solução do dilema proposto no início deste artigo afirmador dos princípios científicos e de seus protocolos de segurança para que se leve a cabo a revolução que deve ser feita: sair de nossos espaços privados, confiantes na ciência, e ocuparmos o espaço público exigindo, em defesa da vida, o impeachment de Bolsonaro.
Com a atual crise econômica e social que vige no Brasil, permanecer radicalmente confinado entre quatro paredes significa, ainda que involuntariamente, endossar o uso político que o governo faz da pandemia, interessado em que a pandemia seja postergada ao máximo, a fim de inibir as manifestações de rua, que podem pressionar a abertura do processo de impeachment de Bolsonaro e do projeto neoliberal genocida, que ele também e tão bem representa.
Até porque adiar a mobilização da pressão das ruas pelo impeachment, apenas favorece as intenções abertas de Bolsonaro, que procura criar um fato político para instituir um regime ditatorial no país.
Que fique claro: ou nos mobilizamos para fazer prosperar o impeachment de Bolsonaro ou, em breve, ele dará um impeachment em nossa democracia.
Charles Gentil
Presidente do Diretório Zonal PT do Centro. Integrante do Democracia e Luta. Coordenador do Comitê Popular Antifascista Ponte Rasa Pela Democracia e Lula Livre