Bolsonaro, Prevent e gabinete paralelo: o pacto que levou 600 mil à morte

Foto: Agência Senado

A campanha negacionista do governo Bolsonaro em favor do vírus da Covid-19 – na suposição de que quanto mais brasileiros fossem contaminados, mais rápido o país chegaria a uma imunidade de rebanho e, com isso, retomar a atividade econômica – é muito mais engenhosa do que se imaginava. Com o depoimento da advogada Bruna Morato, nesta terça-feira (28), a CPI da Covid ligou os pontos que unem o gabinete paralelo de Bolsonaro, a operadora de saúde Prevent Senior, o Ministério da Saúde militarizado e até o Ministério da Economia de Paulo Guedes. Todos unidos na estratégia de difundir a ideia de que a população poderia se proteger de uma infecção pelo vírus ou evitar um agravamento da doença com a adoção do chamado tratamento precoce. Aos senadores, Morato confirmou as denúncias de um grupo de médicos, reunidos em um dossiê enviado à CPI, de que a operadora obrigava os profissionais a receitarem o ‘kit covid’, que continha oito drogas ineficazes contra a doença, a pacientes infectados ou não.

A utilização de idosos como cobaia para testes com os medicamentos, um experimento que remete aos horrores da Segunda Guerra, também foi confirmada pela advogada dos médicos, bem como a exposição dos profissionais ao risco de infecção por falta de equipamentos de proteção individual. Médicos infectados eram, inclusive, obrigados a trabalhar. No caso dos pacientes atendidos pela Prevent Senior, a faixa etária elevada dos atendidos pelo plano, na média de 68 anos, tornava o experimento macabro promovido pela operadora ainda mais perigoso e letal

A operadora, de acordo com o relato, enviava os kits covid como parte de uma estratégia de redução de custos, evitando gastos com internações. Além disso, os pacientes ficavam no escuro quanto à informação de que participavam de um estudo sobre os efeitos das drogas. O dossiê também indica que houve adulteração das causas da morte nos atestados de óbito de diversos pacientes. À CPI, Morato afirmou que os profissionais estão sob constante ameaça e que até seu escritório foi invadido, como ato de represália por causa das denúncias. 

Gabinete paralelo

Morato revelou que o diretor da Prevent Pedro Batista, que é tenente médico da reserva do Exército, atuou para embasar as teses negacionistas de Bolsonaro, mantendo contato constante com o gabinete paralelo do governo. Ele também tentou uma aproximação, em março de 2020, com o então ministro da Saúde, Henrique Mandetta, mas não obteve sucesso. À época, Mandetta vinha criticando a disseminação do vírus nas unidades da operadora e o alto número de mortes.

“Ele [Pedro] tentou se aproximar então de supostos assessores, que estariam orientando o governo federal. Eles estariam alinhados com os interesses do Ministério da Economia”, relatou a advogada, respaldada pelas denúncias feitas pelo grupo de 12 médicos.

Segundo a advogada, era preciso inspirar confiança na população de que a Covid-19 não oferecia perigo devido à existência de drogas como a cloroquina. Nesse sentido, ela relatou, a participação do gabinete paralelo foi fundamental para a estratégia de Bolsonaro, em especial pela atuação dos médicos Anthony Wong, Nise Yamaguchi e Paolo Zanotto.

“Existia um plano para que as pessoas pudessem sair às ruas sem medo, por meio do aconselhamento de médicos ”, explicou. “A Prevent Senior iria entrar para colaborar com essas pessoas. É como se fosse uma troca, um pacto, uma aliança”, descreveu Bruna Morato.

Economia não podia parar

“O fato novo é a relação do gabinete paralelo com o Ministério da Economia”, pontuou o relator Renan Calheiros (MDB-AL). “Era um alinhamento ideológico, a economia não podia parar”, concordou Morato. “Era preciso conceder esperança para que as pessoas saíssem às ruas. Essa esperança tinha nome: hidroxicloroquina”.

Em abril de 2020, Bolsonaro chegou a divulgar os resultados de um suposto estudo da Prevent Senior com resultados positivos do tratamento precoce. Áudios ouvidos durante a sessão revelam que o diretor do instituto de pesquisa da operadora Rodrigo Esper, pediu uma revisão do estudo feito com pacientes. “Os dados precisam ser assertivos e perfeitos porque o mundo está olhando pra gente”, disse. A advogada sustenta que a operadora alterou dados dos pacientes em seus relatórios.

Braga Netto

Em maio, Bolsonaro compareceu ao Supremo Tribunal Federal com empresários para defender uma agenda de retomada da economia, ao lado do general Walter Braga Netto, peça-chave na engrenagem da maior catástrofe humanitária da história recente no país. Sob a coordenação de Braga Netto na Casa Civil, no entanto, não foi a economia que disparou mas sim o implacável contador de mortos por Covid-19 no país: no dia 30 de março deste ano, um dia após sua saída do cargo, o país batia mais um recorde de mortes diárias (3.801), acumulando 317,6 mil óbitos no total. Missão cumprida, como atestou o general Eduardo Pazuello, meses depois, na CPI. Pelo papel de Braga Netto na tragédia, a CPI estuda sua convocação à comissão.

A estratégia de Bolsonaro ganhou mais força a partir do segundo semestre de 2020, culminando com a atuação do gabinete paralelo em Manaus, em janeiro de 2021, quando pacientes foram submetidos ao tratamento precoce ao invés de receber oxigênio. À frente da operação macabra, a secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro, a “Capitã Cloroquina”, que até hoje ocupa a função na pasta. Durante a oitiva, os senadores decidiram pedir pela exoneração de Pinheiro.

O senador Humberto Costa (PT-PE) apontou para a gravidade dos experimentos com a população, feitos pela Prevent Senior, com o conivente silêncio do Conselho Federal de Medicina (CFM) e o incansável incentivo de Bolsonaro.

Atuação conjunta

“O governo federal, o gabinete paralelo, o Conselho Federal de Medicina e a Prevent Senior atuaram em conjunto para permitir que essa situação acontecesse”, denunciou o senador, referindo-se às mortes registradas pela operadora ainda quando Mandetta era ministro. Ele lembrou que a resolução do CMF emitindo parecer autorizando tratamento precoce foi publicada no mesmo dia em que Mandetta foi demitido.

A advogada confirmou a tese de Costa, e destacou que a Prevent sentiu-se protegida pelo Ministério da Saúde, a ponto de encampar os experimentos com tratamento precoce. “A Prevent Senior tinha segurança de que ela não sofreria fiscalização do Ministério da Saúde ou de outros órgãos vinculados, foi essa segurança que fez nascer neles o interesse de iniciar um protocolo experimental, cientes de que não seriam devidamente investigados ou averiguados pelo ministério”, ressaltou Morato.

O senador apontou crimes de falsidade ideológica na mudança de descrição da causa da morte de pacientes atendidos pela operadora. “Se um plano de saúde, com a responsabilidade que tem, frauda um atestado, não está cumprindo seu papel como instituição de saúde, está jogando como Bolsonaro, ao lado do vírus. Para tentar vender uma ideia falsa de que estava morrendo menos gente, corroborando o grande compromisso que a Prevent Senior fez com Bolsonaro, de dar legitimidade a esse tratamento”.

Autorização para matar

“Estamos falando de uma eutanásia não autorizada”, disse o senador Rogério Carvalho (PT-SE), que exibiu vídeos com depoimento parentes de vítimas e reportagens sobre o óbito de um paciente que havia sido submetido a sessões de ozonioterapia pela Prevent, mesmo sem permissão do Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).

Para o senador, não há dúvida de que usuários foram usados como cobaias. “Vimos isso na Segunda Guerra Mundial, uma triste memória que a humanidade carrega, e estamos vendo aqui, em pleno 2021”, afirmou.

O senador foi além e denunciou a existência de um acordo com o governo para que a Prevent tivesse “autorização” para matar. “Se [alguém] pode colocar um paciente em cuidado paliativo, sem que esteja em estado terminal e, sim em um processo inflamatório que pode ser reversível, ele tem autorização para matar”, explicou, lembrando que operadora tinha proteção do governo federal e do Conselho Federal de Medicina para agir.

Requerimentos

Durante a oitiva, os senadores aprovaram requerimento do senador Rogério Carvalho para que a Procuradoria da República e a Polícia Federal investiguem o Conselho Federal de Medicina (CFM), o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e a Agência Nacional e Saúde Suplementar (ANS). Carvalho defendeu ainda a convocação do secretário de Políticas Econômicas do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida.

“Dali [ da Economia] brota a base e o estímulo para essa teoria que levou centenas de milhares de brasileiros à morte, a teoria da imunidade de rebanho”, defendeu.

O senador Humberto Costa também exigiu, em requerimento aprovado, que a Prevent entregue em até 24 horas, documentos com termos de consentimento para uso dos medicamentos na pesquisa clínica conduzida pela operadora.

Da Redação da Agência PT

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