As pedaladas fiscais de Geraldo Alckmin

 

Às vésperas da primavera, Geraldo Alckmin chamou oito empresários para jantar no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo de São Paulo. Queria conversar sobre os rumos do País. À mesa naquela quinta-feira, Pedro Faria, presidente da BRF Foods, Marcelo Noronha, vice do Bradesco, e Flavio Rocha, dono da Riachuelo, entre outros.

O governador era só pessimismo. A economia e a política iam de mal a pior, Dilma Rousseff estava sem saída. Durante o dia, chegara às mãos de Eduardo Cunha o principal pedido de impeachment hoje em curso na Câmara dos Deputados.

Conversa vai, conversa vem, eis que Alckmin comenta que as famosas “pedaladas fiscais”, um dos combustíveis do Fora Dilma, são comuns de Norte a Sul. Se virassem motivo de cassação, uma penca de governadores e prefeitos deveria botar as barbas de molho.

Sempre bem afeitado, rosto lustroso de bom moço do interior paulista, Alckmin é um desses mandatários com razões para inquietar-se e deixar de molho uma metafórica barba.

Candidato a presidenciável na eleição de 2018, impopular como nunca, segundo as últimas pesquisas, o tucano esbaldou-se naquelas “pedaladas” que embalam o sonho de Cunha e da oposição de varrer o PT do Palácio do Planalto. Em junho passado, o Tribunal de Contas do Estado (TCE) de São Paulo aprovou “com ressalvas” as contas de Alckmin relativas a 2014. Entre os senões apontados, um era a insistência do governador em manejar o Orçamento com expedientes duvidosos empregados também em 2015.

Menos embaraçoso do que a derrota de Dilma em outubro no Tribunal de Contas da União (TCU), mas nunca, em três mandatos, o tucano tivera revés igual em uma corte política repleta de apadrinhados dele. Com o TCE debruçado sobre seus números, Alckmin assinou vários decretos de suplementação de gastos quando já sabia não ser possível cumprir a meta fiscal fixada para 2015.

Sabia, pois havia pedido à Assembleia Legislativa que reduzisse o chamado superávit primário. Uma situação bem parecida com aquela invocada na vendetta de Cunha como justificativa para aceitar o pedido de impeachment da presidenta. A derrota de Alckmin no TCE foi comandada pelo mais antigo conselheiro do tribunal, Antonio Roque Citadini, no posto desde 1988. O decano liderou uma dissidência contra o relator, Dimas Ramalho, ao declarar durante o julgamento: “Seguramente é a pior conta que eu enfrento nesses últimos dez anos”.

Uma das queixas dele era a permissividade da Lei Orçamentária, desenhada sob a bênção de Alckmin. Há anos a legislação garantia ao tucano facilidades para tirar dinheiro de um lugar e colocar em outro sem ter de negociar com a Assembleia.

Na decisão sobre as contas de 2014, o TCE recomendou a Alckmin que “desconsidere” os dispositivos facilitadores, constantes do artigo 9 da Lei Orçamentária de 2015. Coincidência ou não, os mecanismos sumiram da lei de 2016.

“Desconsiderar” foi um eufemismo encontrado para não criar muitos constrangimentos ao tucano, conforme relato feito a CartaCapital por uma fonte do TCE. Segundo essa fonte, os dispositivos permissivos da Lei Orçamentária merecem um rótulo mais duro e incriminador: “Inconstitucionais”. A aprovação do Orçamento, segundo a Constituição, é uma tarefa legislativa.

Cabe a um governante abrir crédito suplementar para alguma seara ou remanejar verba entre áreas diferentes só com prévia autorização legislativa. Os dispositivos da Lei Orçamentária paulista funcionariam na prática como um “cheque em branco” dado a Alckmin para refazer de alto a baixo o Orçamento aprovado pelos parlamentares.

Diante disso, o governador tucano parece estar ao alcance da mesma argumentação utilizada no pedido de impeachment de Dilma Rousseff em curso em Brasília. Se Alckmin violou a Constituição Federal na gestão do Orçamento com atos assinados do próprio punho, como é o caso de inúmeros decretos, então seria possível acusá-lo de crime de responsabilidade.

Segundo a Lei nº 1.079, de 1950, a mesma brandida contra Dilma, se o chefe do Executivo atenta contra o Orçamento, é crime. Este mandamento vale para o presidente da República e também para governadores cujos estados não tenham Constituição local a conter definição própria de crime de responsabilidade. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou na Carta Magna paulista o artigo que tratava do assunto.

Um pacote de 31 decretos assinados pelo governador entre 24 de abril e 7 de julho do ano passado também tem potencial para aborrecer o tucano com pedidos de impeachment formulados sob a mesma inspiração daquele disparado contra Dilma. Muito provavelmente serão usados como argumento de defesa de Dilma Rousseff.

Os decretos garantiam suplementação orçamentária para várias áreas, um total de 1,2 bilhão de reais. Uma semana após baixar o primeiro, de número 61.243, com 274 milhões de reais para a Educação, o governador mandou à Assembleia sua proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2016.

Incluiu no projeto, discretamente, um pedido para diminuir a meta fiscal de 2015. O esforço para pagar juros da dívida cairia de 3,3 bilhões para 1,2 bilhão de reais. A recessão econômica tinha abalado o caixa paulista, sem recursos suficientes para bancar todos os compromissos programados. Mesmo drama de Dilma. A LDO foi aprovada em 30 de junho. Entre seu despacho pelo Palácio dos Bandeirantes à Assembleia e a aprovação pelos deputados, Alckmin assinou 22 decretos de crédito suplementar. Até sancionar a lei assinou outros oito.

No pedido de impeachment de Dilma, os advogados Hélio Bicudo, ex-petista, Miguel Reale Jr., ministro da Justiça na administração Fernando Henrique, Janaína Paschoal e Flavio Henrique Costa Pereira alegam que a presidenta cometeu crime de responsabilidade ao assinar, em 2015, seis decretos de crédito suplementar no mesmo período em que pedira ao Congresso para mudar a meta fiscal federal e autorizar o Planalto a fechar o ano com déficit. E que tal manejo orçamentário feito por decretos exigiria aval parlamentar prévio, ou seja, lei.

Tais alegações são a justificativa apontada pelo inefável Eduardo Cunha para mandar o processo de impeachment seguir adiante. Embora o pedido de deposição mencione corrupção na Petrobras, empréstimos internacionais do BNDES e financiamento de campanha, entre outras, o peemedebista chama tudo isso de ilações e apega-se apenas aos decretos de crédito suplementar datados de 2015.

No documento de 22 páginas em que acolheu o pedido, o presidente da Câmara diz ver naqueles atos o envolvimento direto de Dilma e um fato ocorrido no atual mandato, uma forma de fugir da dúvida sobre se acontecimentos do primeiro mandato seriam suficientes.

No texto escreveu serem necessários uma “análise exauriente” do caso dos decretos e um “aprofundamento das razões a levar o governo a adotar essa prática das chamadas pedaladas fiscais também em 2015”. Pelos termos da Lei nº 1.079, Dilma, segundo Cunha e a turma do impeachment, teria violado a gestão orçamentária.

Uma curiosidade. O vice-presidente Michel Temer também assinou em 2015 decretos do tipo contestado por Cunha e os defensores do impeachment. Foi ao exercer a Presidência durante viagem da mandatária ao estrangeiro.

A notícia custou-lhe questionamentos perante o TCU e pedidos de impeachment na Câmara, por ora sem maiores consequências. No TCU, o procurador Julio Marcelo de Oliveira, representante do Ministério Público Federal, diz que Temer não pode ser responsabilizado, só teria seguido uma política formulada por outros agentes do governo.

Não é um argumento que ajuda Oliveira a livrar-se de pecha de militante anti-Dilma imputada por alguns, mas Temer agradece. Na Câmara, Cunha engavetou dois pedidos de impeachment contra o vice. Não era de se imaginar que um parceiro político de Temer agiria de outra forma.

Apesar de semelhantes, os enredos dos decretos federais e paulistas e seus contextos não são idênticos. Ao assiná-los, Dilma pediu ao Congresso para transformar a meta fiscal de 2015 em déficit, enquanto Alckmin solicitou à Assembleia a redução da meta, mantida superavitária.

No plano federal, o suplemento orçamentário foi bancado por uma combinação de saldo financeiro, excesso de arrecadação e cortes parciais de certos gastos. Em São Paulo, só com o corte de outras despesas na mesma proporção.

Outra diferença digna de registro. O presidente da Câmara, a quem cabia examinar o impeachment da presidenta, é inimigo de Dilma e moveu-se por vingança. O da Assembleia paulista, o tucano Fernando Capez, responsável por uma decisão sobre pedidos contra Alckmin, é aliado do governador.

A história dos decretos de crédito suplementar como caracterizadores de crime de responsabilidade surgiu pela primeira vez no impeachment em 17 de setembro de 2015, dia em que uma nova versão do pedido foi entregue na Câmara por Reale Jr. e uma filha de Bicudo.

Por coincidência, foi a data do jantar de Geraldo Alckmin com os empresários em que o tucano mostrou receio com a pregação do Fora Dilma estar atrelada a “pedaladas fiscais”. Em várias manifestações públicas, o governo federal diz ter agido com respaldo de dispositivos da Lei Orçamentária. O Palácio dos Bandeirantes não respondeu ao pedido de CartaCapital para esclarecer a base jurídica dos decretos. A explicação está possivelmente nos mecanismos da lei paulista que o TCE queria ver desconsiderados.

O medo de ser tragado por alguma “pedalada” não é o único motivo para Alckmin torcer o nariz para a tentativa de cassar Dilma Rousseff nos termos atualmente colocados. A queda da petista interessa aos outros presidenciáveis tucanos, senadores Aécio Neves, de Minas, e José Serra, de São Paulo.

O primeiro quer outra eleição já, para concorrer de novo. O segundo, estrelar um governo Temer. Ao contrário deles, para ter chance de chegar ao Planalto, Alckmin precisa que Dilma termine o mandato e haja eleição normalmente em 2018.

Até lá, ele teria tempo de tentar recuperar a imagem de seu governo, dono hoje de seus piores índices de aprovação, segundo o Datafolha, e para tomar as rédeas do partido das mãos de Aécio. Ou então para buscar uma legenda disposta a garantir-lhe a vaga de candidato. O PSB, do falecido Eduardo Campos e do vice-governador paulista, Marcio França, anda de braços abertos.

Com o cenário embolado no PSDB, teve jeito de jogo de cena a unanimidade pró-impeachment proclamada por caciques e governadores tucanos, Alckmin incluído, em uma reunião em dezembro, em Brasília. O paulista coleciona denúncias de falta de entusiasmo com a causa. Em julho, à Radio Jovem Pan, disse que não adiantava enganar as pessoas: “Se não tiver um embasamento jurídico, não vai ter impeachment porque o Supremo Tribunal Federal não vai deixar”.

Em agosto, após conversar com Aécio e FHC em São Paulo, questionou: “Você vai fazer um impeachment baseado num parecer do TCU?” Em novembro, no programa Canal Livre, da Band, afirmou que “pessoalmente tem uma impressão de seriedade” de Dilma.

Mas, para disfarçar seu desapego com a ideia de depor Dilma e atender pressões partidárias internas, vez ou outra dás umas estocadas. Martela ser preciso “investigar, investigar e investigar” Dilma, que “impeachment não é golpe” e que o PT “era o rei do impeachment”.

Sepultar o impeachment assim que o Congresso voltar do recesso, em fevereiro, é um dos principais objetivos do Palácio do Planalto, outro é definir logo um rumo econômico a ser seguido e vendido à praça pelo novo ministro da Fazenda, Nelson Barbosa. Numa tentativa de esvaziar as alegações utilizadas no Fora Dilma, o governo liquidou em dezembro um enorme passivo assinalado pelo TCU como decorrência das “pedaladas fiscais”.

De uns tempos para cá, “pedalada” virou sinônimo de trambique orçamentário, mas sua concepção original refere-se ao atraso no repasse de verba para bancos públicos, os quais pagavam do próprio bolso gastos federais como o Bolsa Família e eram ressarcidos depois. Para zerar o passivo, foram pagos 72 bilhões de reais. Consta que ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy era contra a ideia.

Em outra frente para livrar-se da má fama proporcionada pelas “pedaladas fiscais” e fazer arrefecer o ímpeto do impeachment, o Planalto espera que o Congresso ignore o parecer do TCU e aprove as contas do governo de 2014.

Algo que, aliás, Geraldo Alckmin conseguiu na Assembleia Legislativa. Com uma grande e fiel base aliada entre os deputados estaduais, o governador trabalhou para que as “ressalvas” feitas pelo TCE fossem eliminadas de suas contas de 2014 quando do exame delas pelos parlamentares. Dilma Rousseff tem motivos para imaginar uma sorte parecida.

No crepúsculo de 2015, o relator das contas na Comissão Mista de Orçamento, Acir Gurgacz, líder do PDT no Senado, preparou um parecer ao gosto do Planalto. A favor da aprovação das contas, embora com algumas ressalvas, entre estas a pobreza dos cenários econômicos e fiscais traçados pelo governo em 2014.

Ao apresentar suas conclusões em 22 de dezembro, mostrou que Alckmin está certo em temer que “pedaladas fiscais” ameacem governantes Brasil afora. Dos 27 estados, disse Gurgacz, 14 não cumpriram suas metas fiscais em 2015. Impeachment dos 14 governadores?

No caso específico dos decretos que se tornaram a dor de cabeça de Dilma, o senador afirmou não ter visto ilegalidades neles. Se tudo correr como esperado, o relatório irá a voto no plenário do Congresso no início de março.

Dúvida angustiante: Eduardo Cunha, patrono do impeachment, estará no comando da Câmara até lá. Quando saiu de férias, o Supremo Tribunal Federal tinha acabado de receber do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, um pedido de afastamento do peemedebista do cargo, em razão dos inúmeros processos existentes contra ele.

O Planalto aposta que, sem Cunha no caminho, o impeachment naufraga. Pelo visto e conhecido, para a secreta satisfação de Geraldo Alckmin.

Fonte:*Reportagem publicada originalmente na edição 883 de CartaCapital, com o título “Governador ciclista”

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