Armas não letais usadas pela Polícia são contestadas por organizações e manifestantes

Ronaldo Ferreira dos Santos é professor desde 1995, quando foi obrigado a alterar sua atuação profissional. O motivo da mudança foi um ferimento por uma bomba de efeito moral durante uma manifestação na avenida Paulista, 18 de maio de 2000. “Quando levantei minha mão estava toda arrebentada. Perdi duas falanges do dedo indicador”, relata. Profissionais da rede estadual reivindicavam aumento salarial e melhoria do ensino. Ronaldo, que antes lecionava português e inglês, foi afastado da sala de aula após o incidente e, agora, é responsável por organizar projetos musicais e esportivos.

O caso dele não é exceção. Criadas para reduzir o impacto negativo das operações de agentes de segurança pública, as armas não letais têm se tornado cada vez mais questionadas por setores da sociedade brasileira acostumados a manifestações – e às costumeiras repressões. Há, inclusive, registro de mortes provocadas pelas armas que, teoricamente, têm menor potencial ofensivo.

Esse tipo de equipamento começou a ser empregado por forças policiais a partir da década de 1990, quando os Estados Unidos, no pós-guerra fria, passaram a buscar alternativas à alta letalidade das forças armadas e policiais. “Quando utilizada da maneira correta para a qual foi fabricada, não mata nem provoca lesão grave, mas lesiona”, lembra o capitão Marsuel Botelho Riani, comandante da Companhia de Cães da Polícia Militar do Espírito Santo e criador de um curso sobre equipamentos de menor potencial ofensivo.

A questão que define o uso é saber em que condições cada arma deve funcionar, a qual distância e em qual intensidade. Convenções internacionais e regras do Ministério da Justiça balizam que atitudes devem ser tomadas para evitar abusos por parte de policiais e quais são os parâmetros para cada atitude, mas não há um regulamento específico em torno das armas não letais. Sem isso, qualquer cidadão que se sinta atingido fica de mãos atadas na hora de exigir o cumprimento da lei.

A Rede Brasil Atual tentou, ao longo das últimas semanas, obter dos órgãos de segurança estaduais as normas internas que balizam o uso de equipamentos de menor potencial ofensivo. A Polícia Militar de São Paulo não quis prestar qualquer esclarecimento a respeito. A Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro tem um encaminhamento para um ajuste na conduta policial com armas não letais – devido a casos recentes de abusos dentro das áreas de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), nos morros cariocas.

A Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul informou não haver qualquer regramento quanto ao tema, mas os integrantes da Brigada Militar têm autorização para utilizar o taser, equipamento de choque que “corta” os sinais fornecidos pelo cérebro ao restante do corpo.
Debilitantes ou incapacitantes

O taser é um dos integrantes da “nova geração” de armas não letais em uso no país. No geral, são chamados por “equipamentos incapacitantes”, que atuam diretamente no sistema nervoso, impedindo o atingido de dar sequência à ação. Estudos da ONG Anistia Internacional publicados ao longo dos últimos anos dão conta de que essa arma pode provocar ataques cardíacos.

Analisando 334 mortes atribuídas ao taser desde 2001 nos Estados Unidos, a organização indicou que 90% das vítimas estavam desarmadas e em muitos casos elas não apresentavam problemas prévios de saúde nem haviam utilizado qualquer droga, fatores apresentados como potencializadores do uso do taser. Um estudo solicitado por um juiz canadense acrescentou que a alteração repentina do ritmo cardíaco levava à morte em especial de pessoas magras ou que haviam passado por um estresse intenso – caso das manifestações reprimidas por policiais, por exemplo.

Outra opção que vem sendo adotada gradativamente no Brasil é o chamado spray colante, literalmente uma espuma que gruda no rosto e só sai com a aplicação de uma substância de efeito antídoto – passar água só piora a situação. Entre os instrumentos mais aplicados no Brasil, no entanto, seguem o gás de spray pimenta, gás lacrimogêneo, balas de borracha e bombas de “efeito moral”. São as chamadas “armas debilitantes”, que provocam dor ou desconforto.

A Condor, principal fornecedora desses instrumentos para as forças de segurança nacionais, adverte que nenhum disparo de balas de borracha deve ser feito a uma distância inferior a 20 metros, sob pena de provocar “hematomas e fortes dores”. Segundo as instruções fornecidas no site da empresa, aprovadas pelo Exército, um disparo entre meio e um segundo de gás de pimenta é o suficiente para incapacitar imediatamente um potencial agressor, com efeitos que duram até 40 minutos.

Maria Zélia Souza Andrade, líder comunitária, conhece os efeitos dessa substância. “É terrível porque vai sufocando. A primeira reação é perder a visão, não consegue enxergar nada. Se anda, cai em cima das pessoas. Quando abre os olhos, dói cada vez mais”, afirma a ativista. Ela acumula diversas experiências de repressão promovida por policiais, tendo presenciado e sentido os efeitos das armas não letais por algumas vezes.

Na última delas, em 2010, moradores do Jardim Pantanal, na zona leste de São Paulo, foram ao centro da cidade protestar contra a demora do poder público em tomar uma decisão em relação a uma região que ficou debaixo d`água durante dois meses. “Não respeitaram ninguém. Tinha criança de menos de um ano de idade. Todo mundo sofrendo ataque, não tiveram nenhum respeito. Eles não jogam para dispersar, jogam diretamente na população”, lembra Maria Zélia.

Marcelo Nery, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), entende que falta fortalecer a visão estratégica sobre o treinamento de agentes de segurança e a melhoria das condições de vida e de trabalho dos mesmos. “Quem vai determinar em que circunstâncias uma arma ou outra é mais adequada é a inteligência policial, uma coisa que, infelizmente, nesse país é bastante deficiente, se é que posso dizer que ela existe em todos os lugares”.
Regras e reação

Em portaria publicada no último dia de 2010, o Ministério da Justiça e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República pontuam que cada agente de segurança deve ter à disposição ao menos dois instrumentos não letais. A intenção do governo federal é que as corporações estaduais e mesmo as forças nacionais de segurança consigam reduzir a letalidade em suas ações. Para isso, a portaria interministerial pede que os governos locais editem atos normativos que disciplinem o uso da força entre seus agentes, inclusive estipulando as circunstâncias, o ambiente e o risco imposto a terceiros pela aplicação de equipamentos não letais.

Capitão Riani, do Espírito Santo, acredita que o uso adequado das armas não letais melhoraria a imagem que a população em geral tem em relação aos policiais, mas não vê necessidade de edição de uma lei específica em torno do tema. “A partir do momento em que as políticas têm uma série de normas que regulam as leis em geral, os equipamentos não letais vão se enquadrar nisso.”

Para o Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, não é suficiente. Defensora de um debate amplo sobre o tema, a instituição entende que a sociedade deve ter acesso às normas que regulam a ação de policiais em eventos públicos. Em fevereiro, foi encaminhado um ofício à Ouvidoria da Polícia Militar paulista para saber que motivos haviam levado os agentes a reprimir uma manifestação contra o aumento da passagem de ônibus na capital paulista.

“É inadmissível o emprego da força da forma que foi orientada em um Estado democrático de direito, mostrando a falta de preparo para uma atuação que respeite os cidadãos e a Constituição”, ponderou Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo, em um comunicado emitido à época.

Até agora, a Ouvidoria não deu resposta ao ofício. Quando procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa do órgão público indicou que não há estatísticas a respeito do assunto. O uso inadequado de armas não letais pode figurar em itens como “abuso de autoridade”, “lesão corporal” e “agressão”. Descumpre-se, assim, uma das determinações do governo federal, que é a de que cada policial que ocasione lesão ou morte por meio de uma arma preencha um relatório a ser encaminhado aos órgãos internos de controle das atividades.
Assistência

Consta na portaria interministerial que os policiais deveriam prestar atendimento a todos os feridos, o que não se dá na prática. A estudante Mayara Vivian precisou da ajuda de amigos quando, numa manifestação sobre aumento da tarifa de ônibus em 2007 foi ferida pela repressão da Polícia Militar.

“Vi um objeto rolando perto de mim, só que estava correndo, não estava enxergando nada por causa do gás lacrimogêneo”, explica. “Na hora não senti nada, só um calor e fiquei meio surda porque o barulho é terrível. Continuei correndo, estava assustada”, narra. No meio da confusão, Mayara não se deu conta de que sangrava muito e que parte de seu dedo estava pendurado. Com a perna queimada pelas bombas, teve de ser carregada até o hospital, onde foi feita a reconstituição da falange atingida.

A queixa de quem costuma ir a manifestações é de que a ação policial muitas vezes começa sem motivo e claramente extrapola limites. “Alegam que algumas pessoas jogaram alguns instrumentos, mas alguns professores disseram que tinha policiais a paisana agitando”, lamenta Éder Carlos de Oliveira, professor da rede pública paulista atingido por dois disparos de balas de borracha durante manifestação em 2010.

Ferido na cabeça e em uma das pernas, Éder foi levado ao hospital, registrou boletim de ocorrência e passou por exame no Instituto Médico Legal. O professor pretende ingressar com ação contra o Estado por danos morais e pessoais. “Cada um tem sua versão. O que digo é que não é do meu feitio brigar com as autoridades, que deveria dar segurança”.

À ocasião, a foto de um suposto professor ajudando uma policial feminina ferido ganhou a primeira página de vários jornais. No dia seguinte, veio a descoberta de que se tratava de um policial disfarçado de manifestante, o que aumentou suspeitas de que os próprios agentes poderiam ter provocado a repressão.

A disposição do Ministério Público Estadual e do Judiciário para levar casos assim adiante é pouca. Ronaldo, o professor que teve de deixar as salas de aula após ferimento com bomba de efeito moral, teve de esperar onze anos para que se esgotassem os recursos em ação na qual o governo de São Paulo foi obrigado a pagar indenização de R$ 150 mil.

O juiz rejeitou o recurso apresentado pela Fazenda paulista de que a vítima poderia ter sido ferida por bombas levadas pelos manifestantes ao local, indicando que cabe ao réu provar que não provocou o problema. “Queria provar mesmo que eu não estava errado”, assinala Ronaldo. “Passei em psicólogo e tudo. Na época eu sofri muito, você sente a mão queimada, o cheiro de carne queimada.”

 

por: Rede Brasil Atual

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