Por MARCOS REHDER BATISTA no Opera Mundi
Há um mês e meio (21/06) foram apresentadas as 121 diretrizes para a construção do Programa de Governo Lula-Alckmin 2022, unindo sete partidos para resgatar uma série de garantias de direitos, aperfeiçoamentos institucionais e avanços econômicos em progresso desde a Constituição de 1988 e em risco nos últimos três anos e meio.
Entre discordâncias, descontinuidades, estratégias e resultados diversos e disputas políticas acirradas, nunca a democracia foi negada, nem a urgência da inclusão, a liberdade de investigação e expressão, nunca cogitou-se abertamente o autoritarismo. No mínimo, as forças políticas que compõem esta candidatura entenderam o quão eram pequenas as divergências diante do apocalipse que vivemos hoje.
Não basta propor um bom programa que nos coloque na Economia 4.0 e na Sociedade 5.0, este pesadelo não passa sem o envolvimento do maior leque possível de atores sociais, econômicos e políticos em sua elaboração, pois muitos setores parecem tapar os olhos para a política econômica refratária e o caos nas instituições democráticas que nos levam à ruína, de trabalhadores informais aos grandes empresários.
Trago aqui uma sistematização e algumas reflexões contextualizadas nas “diretrizes” para a governança pública e indução do desenvolvimento. Expõe alguns esclarecimentos sobre como olhar para um Plano de Governo elaborado de modo participativo, fundamental para este começo de período eleitoral, e esta análise e suas sugestões foram avaliadas pela equipe de elaboração do Programa de Governo.
Quando Lula fala em governo participativo, desde início deixa claro que pretende efetivar uma série de mecanismos que vem sendo pensados desde o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), sem que a descentralização incorra na precarização. Uma conexão com o Congresso e com os diversos extratos do Brasil mostrou-se crucial para que qualquer proposta ganhe forma, clareza que fez até mesmo o mainstream substituir na virada do século o termo “gestão” (New Public Management – NPM) por governança (New Public Governance – NPG), mecanismos de coordenação de atores envolvidos.
O ponto de partida são diretrizes e mecanismos de participação (ou, accontability horizontal), um governo é o desenrolar deste processo, e a cobertura da imprensa parece não ter entendido isso (FERNANDES et al, 2018; O’DONNELL, 1998). O presente esboço aponta 4 equívocos cometidos na divulgação midiática deste processo participativo de elaboração do futuro programa de governo da candidatura Lula 2022, não focando em falhas de linguagem, mas supondo que muitos na imprensa não entenderam as diretrizes e muito menos o processo (parte fundamental do próprio projeto); o diálogo com empresários e movimentos sociais depende desta compreensão. Enumero as seguintes:
1. Diretrizes e Programa: diretrizes são objetivos, e o Programa (soluções) vem do diálogo com apoiadores e, posteriormente, com todo o congresso, agentes sociais e econômicos, na construção do governo (botton-up, e não top-down).
2. Governança como proposta fundamental: “Defesa da democracia e reconstrução do Estado e da soberania”, última das partes, traz a governança do Estado Participativo, dá sentido para todo o resto, completamente negligenciada pela imprensa.
3. Objetivos econômicos: há objetivos microeconômicos de ganho de produtividade, competitividade e proteção social para fortalecer mercado interno, e a imprensa cobra soluções macroeconômicas; estratégia macroeconômica vem como meio, e não fim.
4. Objetivos sociais: constam os objetivos sociais de inclusão, políticas finalísticas e combate à miséria, as estratégias virão da construção coletiva e das condições encontradas.
Quanto ao primeiro esclarecimento, “diretrizes” não são o “programa”, trazem objetivos e não soluções, o que foi apresentado foram três grupos de pautas: “desenvolvimento social e garantia de direitos”, “desenvolvimento econômico e sustentabilidade socioambiental e climática” e “defesa da democracia e reconstrução do Estado e da soberania”.
Dado que as 121 diretrizes foram, no geral, divulgadas na imprensa de forma aleatória, sem a menor noção de conjunto, e o último grupo, garantidor da administração todo o resto (talvez por isso seja o último (o desfecho da reconstrução do país), negligenciado, decidiu-se aqui inverter a ordem de apresentação original, até porque o objetivo último é o desenvolvimento social, com uma sociedade economicamente forte e justa, uma cidadania garantidora de várias liberdades. Segue uma breve discussão sobre estes três grupos temáticos, na ordem dos tópicos em tela: 2, 3 e 4.
2. Governança e Estado Democrático contemporâneo
Quando se fala em ruptura institucional não se trata apenas em respeitar os resultados eleitorais; refere-se às instâncias decisórias, mecanismos de avaliação e participação e garantia das condições de interação entre os agentes, em níveis interno e externo. Todos estes quesitos foram violados pelo atual governo, acarretando em prejuízos para os atores econômicos, políticos e sociais, do comércio internacional à clareza no atendimento de demandas cívicas e políticas (orçamento secreto é a cereja deste bolo). É urgente um resgate do que já havia repensado pelos novos paradigmas da administração pública e de funcionamento do Estado.
Os anos 1980 e 90 foram marcados pela chamada New Public Management (NPM), racionalização do Estado focada na eficiência regida pelo enxugamento e no resultado. A terceirização dos serviços exige um fortalecimento das agências de auditoria pública que esbarrava em limitações políticas, e sem mecanismos eficientes de participação nem sempre os resultados respondem às demandas dos diversos setores.
Estas deficiências levaram à uma reformulação no framework predominante, havendo a transição para a New Public Governance (OSBORNE, 2006; POLLITT, 2011; DAGNINO et al, 2016; CAVALCANTE, 2018), cujo objetivo central é a moderação entre os diversos atores na elaboração e execução das políticas públicas. Pode-se dizer que o PDRAE (BRASIL, 1995) aplicou a NPM, fundamentado na terceirização e descentralização, e seus próprios idealizadores identificaram o problema de articulação, havendo um esforço de aprimoramento da governança no novo Aparelho de Estado desde o início deste século, que foram fortemente comprometidos desde 2019. Toda a terceira e última sessão das “Diretrizes”, “Defesa da democracia e reconstrução do Estado e da soberania”, trata deste problema.
Toma-se aqui a abordagem de análise de governança proposta por Elinor Ostrom, Nobel de Economia em 2009, usada mundialmente como referência na área, inclusive pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC; todos os critérios apontados por ela constam nas “Diretrizes”.
Nele, os sistemas decisórios onde se operam políticas estão interligados por níveis que vão do global ao local, os sistemas policêntricos (OSTROM, 2010), e a efetividade (governança) em cada nível é avaliada por 6 critérios (OSTROM, 2011)1 : i. prestação de contas e ii. conformidade legal (public governance, propriamente dita); iii. eficácia econômica e iv. Sustentabilidade (crescimento econômico sustentável); v. equivalência fiscal e vi. Capacidade redistribucional (políticas fiscal e social).
As diretrizes para a construção do Programa de Governo Lula-Alckmin adéquam-se perfeitamente à tais critérios, de modo que a sequência desta sessão tratará de como o sistema policêntrico onde o Brasil se insere é concebido, e depois da renovação do Aparelho de Estado (public governance: i. prestação de contas e ii. conformidade legal). As próximas sessões obedecerão a ordem crescimento econômico sustentável e políticas fiscal e social.
Reafirmando a importância da mitigação dos embates políticos que marcaram os trinta anos pós-Constituição de 1988 (dir.97-99), a sessão “Defesa da democracia” passa a delinear as diferentes esferas do sistema polícêntrico que nos envolve. Aponta o compromisso de o Brasil reassumir seu protagonismo global e na cooperação com países pobres, além da retomada da articulação Sul-Sul, sobretudo fortalecimento do BRICS e da Unasul, tanto nas esferas política e econômica como na proteção dos brasileiros no estrangeiro (dir.100-102).
O posicionamento das Forças Armadas na inteligência e na defesa de nossa soberania é fundamental, junto ao seu papel de garantia do Estado de Direito, e não sua tutela (dir. 103- 105). Garantida a soberania externa, torna-se possível o diálogo fundamental entre os entes federativos, o que inclui a reconstrução de instrumentos de participação das sociedade civil respeitando as escalas federais sem que haja conflito com as instituições básicas da democracia representativa, com especial importância para os municípios: estes serão estimulados à articularem-se, sobretudo por via de consórcios (dir. 106-110).
Desgastes totalmente inoportunos com a China evidenciam a urgente reinserção internacional, assim episódios como necessidade de intervenção judicial no combate à pandemia e a estratégia de combate à inflação pesar sobre a arrecadação dos estados demonstram a incapacidade atual nas relações federativas, a desarticulação de conselhos federais e o mecanismo do orçamento secreto sinalizam a oxidação das instâncias de democracia direta e indireta.
Quanto aos instrumentos de prestação de contas, aponta instituições criadas ou fortalecidas nos Governos Lula e Dilma de combate à corrupção, destacando o papel contemporâneo das agências de controle interno e externo de que a accountability avaliam não apenas a conformidade com a lei, mas a efetividade das políticas públicas, e as informações para ambos os tipos de avaliação devem também estar disponíveis à população, respeitando a lei de acesso à informação (dir. 111-116). Estes meios de transparência nos procedimentos públicos foram fortemente afetados de 2019 para cá, o que em si já configura uma ruptura institucional (TENORIO E TEIXEIRA, 2021; FERNANDES ET AL, 2022).
Tanto as instâncias julgadoras da conformidade legal, o Judiciário, quanto as instituições voltadas a denunciar desvios e divulgar veredictos tem sua autonomia fragilizada, deformando não apenas a accountability como compliance, processos cada vez mais cruciais para segurança da cidadania e do mercado. As “Diretrizes” comprometem-se em estabelecer uma cooperação com as cortes que vise o aprimoramento (dir.117), e a regulamentação da liberdade de expressão e de imprensa, prevista na Carta Magna, é posta como garantia legal do exercício do jornalismo sem censura prévia, apenas a evidente responsabilização de quem não consiste em um problema porque um não está sequencialmente dependente do outro.
Estas diretrizes sumarizam o objetivo de renovação de todas as esferas de atuação democrática com as quais os brasileiros precisam contar, dos direitos civis ao mercado, da escala mundial à municipal, resgatando a capacidade de governança e transparência dos projetos, garantindo a avaliação da participação, efetividade, conformidade legal e publicidade de todo o processo.
É totalmente coerente incluir entre as diretrizes a sugestão para que, considerando que progressivamente os municípios se conectam cada vez mais entre si (sobretudo entre os limítrofes), vale, além do incentivo aos consórcios, o aperfeiçoamento da governança subregional dentro do sistema policêntrico (no nível das regiões imediatas, antigas microrregiões), algo já previsto no Estatuto das Metrópoles inclusive para municípios não pertencentes a Regiões Metropolitanas e Aglomerações Urbanas.
3. Crescimento econômico sustentável
A orientação para o desenvolvimento econômico está nitidamente pautada pela Agenda 2030, de modo que as políticas macroeconômicas são vistas como estratégias para missões microeconômicas, não finalidades últimas (ROSSI et al, 2020). Busca aliar objetivos para setores de alta competitividade e modernos com intensivos em trabalho (SACHS, 2004), aliando inovação e economia solidária (DAGNINO, 2014).
Está totalmente conectado com demandas do mercado e da sociedade em nível mundial, entendo o peso da pauta ambiental (dir.47-49), tanto quanto à importância comercial de se cumprir acordos internacionais como na otimização do potencial econômico da biodiversidade, garantia futura dos recursos necessários para a agricultura e inclusão de povos tradicionais residentes em áreas de conservação (dir.90-96): considerando que defende uma economia sustentável, com inclusão social e mecanismos de governança no uso dos recursos comuns (OSTROM, 2011), trata-se de uma abordagem de gestão ESG (BASSEN e KOVÁCS, 2008; FRIEDE et al, 2016; CRIST, 2021).
Divulgação/Ricardo Stuckert
Chapa Lula-Alckmin registrou candidatura no TSE no último sábado (06/08), integrando a Coligação Brasil da Esperança
As estratégias macroeconômicas (dir. 50-60) devem estar a serviços de missões concretas, como desenvolvimento produtivo em setores prioritários do Welfare State ou incremento do valor agregado (ROSSI et al, 2020), e seus principais elementos – taxas de câmbio, juros, salários, inflação e lucro – (MARCONI, 2017) devem ser ajustados para o fortalecimento do mercado interno e oferecer alternativas de atuação anticíclica. (BASTOS e AIDAR, 2020).
Em suma, parte-se do princípio de que até um endividamento público bem planejado em investimentos estratégicos e programas sociais pode promover um crescimento futuro e aumento da arrecadação em ciclos de longo prazo. Esta estratégia exige mecanismos que garantam aumento da produtividade do trabalho, do valor agregado da produção, um novo regime fiscal que tenha “credibilidade, previsibilidade e sustentabilidade” e mecanismos de combate à inflação que não dependam do aumento dos juros. Estas estratégias de combate à inflação incluem estoques reguladores de produtos agrícolas, controle do valor dos derivados de petróleo via nacionalização dos preços e incentivo à produção de bens críticos.
Já a política fiscal, no que se refere à arrecadação aponta, por um lado, para imposto progressivo, fiscalização da sonegação e renegociação das dívidas das famílias e, por outro, desoneração do consumo e da produção de alto valor agregado e tecnologia embarcada; favorável aos agentes econômicos que investem em produção e inovação, desfavorável aos rentistas. Ao convidar para um debate amplo sobre este novo regime fiscal abre-se o diálogo com outras correntes desenvolvimentistas (BRESSER-PEREIRA, 2016; OREIRO e MARCONI, 2016; ROS, 2013), e na medida em que é crucial que os gastos se convertam em crescimento para que haja equilíbrio fiscal, as políticas setoriais precisam contar com uma regulação microeconômica do comportamento dos agentes (governança) capaz de evitar a má-alocação (RESTUCCIA e ROGERSON, 2017) e distorções como seleção adversa, risco moral (STIGLITZ, 2002; COWELL, 2004; OSTROM, 2005).
As diretrizes microeconômicas (dir. 61-70) concentram-se na inovação de processos inclusivos, incluindo a economia solidária, e produtos, tanto com alta tecnologia embarcada como valorização de produtos tradicionais. A prioridade em uma reindustrialização ambiental e socialmente sustentável incentivará as industrias de saúde, energia, alimentos e defesa, capacitando-os para as transições ecológica, energética e digital. Duas indústrias de base também devem ser estimuladas por fornecerem insumos para todas estas transições: química e mecânica de precisão (ROSSI et. al, 2020), além de voltar a extração mineral para o mercado interno.
O setor agroindustrial é valorizado como estratégico, e o estímulo à produção de alimentos deve vir acompanhado da inovação voltada para produção nacional de insumos e produção sustentável, e facilitação das exportações com a recuperação de uma boa política de relações internacionais; a agricultura deve recuperar o protagonismo nas compras públicas e criação de canais de relação direta entre produtor e consumidor. Assim como na indústria, é uma diretriz para a agropecuária a criação de mecanismos de valorização da pesquisa nacional (da familiar à extensiva), além de responder ao atraso digital que funciona como um entrave para uma inserção nacional no Agro 4.0 (BUAINAIN et al, 2021).
Para que estas missões microeconômicas resultem em um desenvolvimento consonante com os ODS’s da Agenda 2030, além da sustentabilidade ambiental já apresentada no primeiro parágrafo desta sessão elas precisam estar orientadas por dois pilares: redução das desigualdades (dir. 87-89), e um aparato em CT&I capaz de democratizar a participação nas cadeias de valor (dir. 81-86). A redução das desigualdades, fundamental para um fortalecimento do mercado interno capaz de fechar as contas ao final do ciclo de recuperação, vai muito além de programas sociais, consistindo na criação de ambientes de negócios desburocratizados e com financiamento qualificado para empreendedores individuais, sociais e cooperativismo, e as desigualdades regionais não devem ser mitigadas via programas endógenos locais mas na cooperação interregional (em total aderência com a sugestão de um sistema nacional de governança subregional apresentada ao final da sessão anterior). O ganho de competitividade também exige uma retomada do investimento prioritário em Ciência, Tecnologia & Inovação, tanto para os agentes competitivos internacionalmente quanto para os em situação de vulnerabilidade. Por isso, a inovação tecnológica deve estar integradas às políticas públicas e à inclusão digital, além do incentivo à nichos de econinovação (SNM). A relação entre economia e pesquisa igualmente deve contemplar a economia criativa, patrimônio histórico e à biodiversidade no incentivo ao turismo.
Em relação às obras de infraestrutura urbana e intermunicipal (dir.71-80), importantes não apenas para melhoria da qualidade de vida e aperfeiçoamento logístico como instrumentos de indução do crescimento, as diretrizes para o programa de governo também ressaltam a integração tecnológica adequada ao conceito de Cidades Inteligentes (MDR, 2020). Estas obras devem otimizar produção, circulação de mercadorias e cidades sustentáveis, com forte planejamento no abastecimento de água e rede de saneamento.
O tratamento de efluentes pode estar integrado à produção de energia (biogás), somando-se a outros esforços em busca da diversificação da matriz energética com fontes renováveis. O papel das estatais no processo de transição energética é crucial por ainda se tratarem de investimentos de risco, dificilmente empenhados sozinhos pela iniciativa privada, por isso a crítica à privatização da Eletrobrás e o desejo de se fazer o mesmo com a Petrobrás (que tenderá a desviar seu foco dos derivados de petróleo).
Apresentado um resumo das diretrizes econômicas, seguem três pontos que podem ser importantes para atingirem-se estas missões: i) regulação da alocação dos recursos ii) papel do comércio internacional na geração de divisas e a iii) importância de uma política microeconômica para o varejo. Se garantias contratuais são fundamentais para otimizar as externalidades positivas de qualquer investimento (públicos ou privados), quando se depende destas externalidades para manter o equilíbrio fiscal no longo prazo o quanto mais aprimorados forem os mecanismos de regulação microeconômica que evitem distorções na alocação por seleção adversa e risco moral, mais seguros serão os resultados.
Mesmo considerando que a prioridade é a produção de massa para o mercado interno focando na inovação de processo, a produção nacional de insumos com maior tecnologia abre espaço para exportações destes, valendo um diálogo com outras correntes desenvolvimentistas também acerca do aperfeiçoamento das exportações, dado esta ser uma importante fonte de divisas para a realização dos investimentos voltados para o desenvolvimento (BRESSER-PEREIRA, 2007, 2016; OREIRO, 2012; OREIRO e MARCONI, 2016). Como última sugestão para o amplo debate chamado pela divulgação das diretrizes para o Programa de Governos Lula-Alckmin 2022, ressalto a importância de políticas específicas para o varejo (DE VRIES, 2014; BUSSO et al, 2013), tanto devido à fragilização destacada do setor durante a pandemia quanto pela sua importância no fechamento do ciclo da cadeia de valor, além seu papel predominante na geração de emprego (há bons embriões para aprofundar uma política para a área, como a desoneração do consumo – que pode ser maior no varejo presencial -, incentivo à produtos tradicionais e segurança de dados.
4. Missões sociais como palavras finais
As missões sociais, “Desenvolvimento social e garantia de direitos”, o primeiro grupo de objetivos apresentados nas diretrizes após a apresentação dos princípios gerais, enumera os principais compromissos relativos aos serviços públicos, consistindo não apenas em uma série setores onde haverão investimentos públicos que podem induzir a criação de negócios na iniciativa privada como, sobretudo, reafirmam a proposta da reconstrução de um Estado de Bem Estar Social que responda aos desafios e demandas do Século XXI.
Esta sessão apresenta os pontos fundamentais que permitem concretizar uma concepção de desenvolvimento em consonância com os direitos humanos, dentro de um consenso internacional fortemente consolidado (ROSSI et al, 2020). É possível organizar estas 34 (dir. 12-46) diretrizes em 4 grupos: proteção social, sistemas de serviços públicos, cidades sustentáveis e direitos civis.
Se de fato a revolução digital da Economia 4.0 provocou uma série de transformações nas relações de trabalho, como a “uberização” e o trabalho remoto, a radicalização deste processo pela pandemia deixou claro o quanto a reforma trabalhista de 2017 não responde à estes desafios e, principalmente, a condição de vulnerabilidade em que estas mudanças aprovadas pelo parlamento submeteram o trabalhador.
Neste sentido, o programa de governo Lula-Alckmin deve rever vários pontos da reforma (dir.12-16), garantindo proteção social para autônomos, trabalhadores domésticos e os que desempenham suas funções via Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICS). Também prevê uma recuperação da capacidade sindical como fórum de negociações coletivas mais seguro, além de apoio à iniciativas de economia solidária e cooperativismo. Também deve retomar a política de valorização do salário mínimo.
A proteção social de cunho assistencial, que não faz parte do leque trabalhista, remete ao fortalecimento de sistemas nacionais de políticas públicas já existentes e criação de outros, o segundo grupo de missões de bem estar. Propõe-se trabalhar em 6 sistemas de governança nacionais: Sistema Único de Assistência Social, Plano Nacional de Educação, Sistema Único de Saúde, Sistema Nacional de Cultura, Sistema Nacional de Esportes, Sistema Único de Segurança Pública.
Na área de assistência social (dir. 17-20) propõe-se à reconstrução da seguridade e previdência social e do urgente combate à pobreza e à fome, além do resgate do modelo institucional do Bolsa Família. Este resgate remete ao vínculo entre assistência e educação (dir.21-22), área onde compromete-se a resgatar investimentos e uma reorientação para uma visão laica, inclusiva e que valorize seus profissionais, no desafio de recuperar a população vulnerável que não teve condições de acompanhar o ensino por meio digital, exigido devido à pandemia.
A covid-19 também mostrou o quanto é fundamental o fortalecimento do SUS e aprimoramento da saúde pública (dir. 23-24), que é o sistema nacional de serviços públicos mais acabado dentre todos. Para a cultura (dir.25-26), outro setor fortemente afetado pelo distanciamento emergencial, destaca-se a importância da criação de um sistema nacional capaz de coordenar a diversidade cultural ao longo do país e as condições de trabalho de seus profissionais, fundamental para conciliar as várias memórias, criatividade e da cidadania, algo crucial no resgate do espírito democrático. O esporte (dir. 27- 28) vem na mesma linha, associado não apenas ao lazer como instrumento de cidadania e educação pessoal e coletiva.
O tema de segurança pública (dir. 31-35) é um caso especial tanto pela articulação política específica que ele exige quanto pelo seu papel crucial para o terceiro grupo de temas desta sessão: cidades sustentáveis. Cidades saudáveis para a convivência social pressupõem segurança como um direito universal, garantida pelo aprimoramento dos sistemas de monitoramento tecnológico e inteligência (inclusive sobre a atuação das forças) que substitua a predominância bélica no combate ao crime organizado, com a valorização profissional e compreensão de especificidades que atendam aos direitos humanos dos policiais, em relação, inclusive, com uma reestruturação favorável de planos de carreira e formação. Especificamente sobre os compromissos na qualificação sustentável das cidades (dir. 29-30), concentra-se no problema da mitigação das desigualdades dentro dos municípios em entre as regiões, sobretudo no acesso à moradia e à transição ecológica.
Nove causas civis (dir. 26-46) ganha destaque nas diretrizes, todas exigindo além de uma transformação cultural de combate à preconceitos e condições legais de proteção, medidas relacionadas que garantam acesso ao mercado (de trabalho e de consumo) e à cidadania (saúde, educação e infraestrutura): 4 identitárias (mulheres, negro, povos tradicionais e LGBTQIA+), 3 etárias (criança e adolescente, juventude e idosos), a questão da acessibilidade e a causa animal.
Às mulheres, negros e população LBGTQIA+ compromete-se à criação de mecanismos afirmativos de acesso às esferas política e profissional, enquanto às populações tradicionais (indígenas, quilombolas e demais populações tradicionais) defende-se a garantia de suas terras e condições para o exercício de suas atividades econômicas, além dos mesmos acessos reivindicados pelos demais grupos identitários. No que se refere aos 3 grupos etários, são demandas menos homogêneas: crianças e adolescentes precisam ter garantidos uma formação em princípios democráticos, com respeito a todas as diversidades que envolvem e total garantia de direitos e proteções previstos no ECA; os principais problemas da juventude é a empregabilidade diante da revolução digital e à crescente pobreza; aos idoso propõe-se garantias de cidadania e bem estar segundo sua condição de vulnerabilidade. Sobre os deficientes compromete-se com a intensificação na garantia dos direitos estabelecidos e no investimento em tecnologias assistivas, desafios muito distantes de estarem dentro dos limites da razoabilidade. A proteção dos animais tem progressivamente ganho destaque no debate público, cujo desrespeito demonstra exatamente onde nos falta humanidade, e poderia estar dentro os desafios ambientais.
Fica como sugestão nesta sessão um aprimoramento em relação à defesa da população idosa, condição de vulnerabilidade aonde mulheres, negros, LGBTQIA+, povos tradicionais, atuais crianças, adolescentes e jovens e homens brancos, héteros e bem nutridos em algum momento vão se encontrar.
A pandemia deixou claro o ocaso de boa parte de nossa sociedade demonstra em relação à sobrevivência e dignidade das pessoas em idade avançada, o desprezo por não terem mais importância produtiva nem terem capacidade de mobilização política. Existe uma gama infinita de possibilidades tecnológicas a serem aprimoradas e oferecidas pelo poder público para melhorar os últimos anos de vida e estender a longevidade, abrindo tanto oportunidades de negócios como condições mínimas de cidadania e direitos humanos.
Este ensaio foi uma tentativa de sistematizar as diretrizes para o Programa de Governo Lula-Alckmin 2022 dentro de uma abordagem de governança, e a principal motivação foi a identificação de uma dificuldade na compreensão do processo de elaboração, aberto para a accountability horizontal desde sua elaboração. A participação do mais amplo leque de atores no levantamento e posterior efetivação das propostas é um espírito que vem inspirando as várias etapas, não ficando sujeita à articulação convencional apenas entre agentes políticos; e entre agentes políticos, desde o início efetua-se um diálogo em torno de propostas, algo também não entendido, e incomum no cenário político brasileiro. Há uma democracia para resgatar, um novo pacto político a realizar e uma economia a recuperar. Novos tempos, novas práticas. A construção não pode parar.
(*) Marcos Rehder Batista é pesquisador do NEA+ (IE-Unicamp) e do GVceapg (EAESP-FGV).
Referências
BASSEN, A.; KOVÁCS, A.M. (2008). Environmental, social and governance key performance indicators from a capital market perspective. Zeitschrift Für Wirstschafts-Um Unternehmensenthik. 9(2).
BASTOS, CP; AIDAR, G (2020). Expansão do gasto público, tributação e crescimento. In: Economia pós-pandemia: desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico para o Brasil/Org: Esther Deweck, Ana Luíza Matos de Oliveira. São Paulo: Ed. Autonomia Literária. 2020
BRASIL (1995). Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado – PDRAE. Brasília: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado – MARE.
BRESSER-PEREIRA, L.C. (2007). O Novo Desenvolvimentismo e a ortodoxia convencional. Revista São Paulo em Perspectiva (SEADE), vol.20, n 3, julho-setembro 2006 .
BRESSER-PEREIRA, L.C. (2016). Reflexões sobre o Novo Desenvolvimentismo e o Desenvolvimentismo Clássico. Revista de Economia Política, vol. 36, nº 2 (143), pp. 237-265, abril-junho/2016.
BUAINAIN, AM; CAVALCANTE, P; CONSOLINE, L (2021). Estado atual da agricultura digital no Brasil: inclusão dos agricultores familiares e pequenos produtores rurais. Campinas: Texto para discussão.
BUSSO, M; FAZIO, V; LEVY, S (2012). (In)formal and (Un)productive: The Productivity Costs of Excessive Informality in Mexico. Inter-American Development Bank Working Paper IDB-WP341.
CAVALCANTE, P. (2018). Convergências entre a Governança e o Pós-Nova Gestão Pública. in Boletim de Análise Político-Institucional Ipea v.1, pp.17-24.
CHRIST, L.F (2021). Eventos ESG negativos: a influência do portfólio do investidor. São Paulo: dissertação de mestrado. EAESP – FGV.
COWELL, F (2004) Microeconomics: principles and Analysis. Londres: Oxford University Press.
DAGNINO, R (2014). A anomalia política de ciência e tecnologia. RBCS Vol. 29 n° 86 outubro/2014.
DAGNINO, R; CAVALCANTI, PA; COSTA, G (2016). Gestão Estratégica Pública. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2016.
DE VRIES, GJ.( 2014). “Productivity in a Distorted Market: The Case of Brazil’s Retail Sector.” Review of Income and Wealth 60(3): 499–524.
FERNANDES, G.A.A.L.; FERNANDES, I.F.L.A.; TEIXEIRA, M.A.C. (2018). Estrutura de funcionamento e mecanismos de interação social nos tribunais de contas estaduais. Rev. Serv. Público Brasília 69, edição especial Repensando o Estado Brasileiro 123-150 dez 2018.
FERNANDES, A.S.A.; TEIXEIRA, M.A.C; NASCIMENTO, A.B.F.M. do; ZUCCOLOTTO, R. (2022). Entre a estabilidade (1995-2014) e a escolha pelos riscos de ruptura democrática: O Brasil na era do bolsonarismo. Administração Pública e Gestão Social, vol. 14, núm. 2, 2022.
FRIEDE, G; BUSCH, T; BASSEN, A. (2015). ESG and ficancial performance: aggregated evidence from more than 2000 empirical studies. Journal os Sustainable Finance & Investment. 5(4).
MARCONI, N (2017). O papel dos preços macroeconômicos na crise e na recuperação. ESTUDOS AVANÇADOS 31 (89), 2017.
O’DONNELL, G. (1998). Accountability horizontal e novas poliarquias. Lua nova, v. 44, n. 98, p. 27-54, 1998.
OREIRO, J.L. (2012). Novo-desenvolvimentismo, crescimento econômico e regimes de política Macroeconômica. Estudos Avançados 26 (75), 2012.
OREIRO, J.L. e MARCONI, N. (2016). O Novo-Desenvolvimentismo e seus Críticos. Cadernos do Desenvolvimentio, v. 11, p. 167-179, 2016.
OSBORNE, S.P. (2006). The New Public Governance? Public Management Review, Vol. 8 Issue 3, 2006.
OSTROM, E. (2005). Understanding Institutional Diversity. Princeton, NJ: Princeton University Press.
OSTROM, E. (2010).Beyond Markets and States: Polycentric Governance of Complex Economic Systems.The American Economic Review Vol. 100, No. 3 (JUNE 2010).
OSTROM, E. (2011). Background on the Institutional Analysis and Development Framework. The Policy Studies Journal, Vol. 39, No. 1, 2011.
POLLITT, C. (2011). Not Odious but onerous: Comparative Public Administration. Public Administration Vol. 89, No. 1, 2011 (114–127).
RESTUCCIA, D. e ROGERSON, R. (2017). The Causes and Costs of Misallocation. Journal of Economic Perspectives—Volume 31, Number 3—Summer 2017—Pages 151–174.
ROS, J. (2013). Rethinking Economic Development, Growth and Institutions. Oxford University Press, Oxford.
ROSSI, P; ROCHA, MA; DWECK, E; OLIVEIRA, ALM de; MELLO, G. (2020). Uma agenda econômica para todos. In: Economia pós-pandemia: desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico para o Brasil/Org: Esther Deweck, Ana Luíza Matos de Oliveira. São Paulo: Ed. Autonomia Literária. 2020.
SACHS, I. (2004) Desenvolvimento : includente, sustentável, sustentado. – Rio de Janeiro: Garamond.
STIGLITZ, J (2002). Políticas de desenvolvimento no mundo da globalização. In: BNDES. Desenvolvimento e globalização: perspectivas para as nações. 2002.
TENÓRIO, F.G e TEIXEIRA, M.A.C. (2021). O conceito de gestão social e a democracia regressiva no Brasil após 2016. Administração Pública e Gestão Social, vol. 13, núm. 2, 2021.