A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) costuma relacionar as ligações clandestinas de esgoto à poluição dos rios e córregos da Região Metropolitana de São Paulo. O bode expiatório é a população de baixa renda, que mora em favelas, até porque no imaginário popular ligação clandestina é “coisa de pobre”.
Ao mesmo tempo, exige ligação exclusiva para o esgoto doméstico; ele não pode ser misturado à água pluvial.
Por isso, geralmente saem das residências duas tubulações. Uma, leva a água da chuva (do telhado, quintal, jardim) até o meio-fio, ou sarjeta. Pelas bocas de lobo, essa água segue para as galerias de águas pluviais. Daí, para rios e córregos.
A outra tubulação (chama-se ramal) transporta água de pia, tanque, vaso sanitário, chuveiro, máquina de lavar roupa. Subterrânea, ela sai da calçada e vai até a rede coletora de esgoto, que pode estar no próprio passeio, no meio da rua ou na calçada do outro lado da rua.
Em princípio, essa rede coletora de esgoto deve se ligar a tubulações progressivamente maiores (coletores-tronco e interceptores), que se conectam à estação de tratamento de esgoto (ETE). O destino final dessa água com fezes, urina, sabão e outros detritos deve ser uma ETE, para receber tratamento físico e químico. Só depois ela pode ser jogada em rio, córrego ou empregada para reuso planejado. Esse é o procedimento adequado tanto do ponto de vista sanitário quanto ambiental.
Só que a Sabesp faz o que condena na população.
“Historicamente boa parte das conexões para jogar esgoto nas galerias de águas pluviais, nos rios e córregos é obra da própria Sabesp”, afirma Ricardo Moretti, professor de Planejamento Urbano da Universidade Federal do ABC.
Em 2010, resolvi investigar isso. Durante dois dias, ambos ensolarados e sem chuva há um bom tempo, participei de um teste. Despejou-se corante (vendido em bisnagas em lojas de material de construção) na caixa doméstica de esgoto (fica na calçada, bem próxima à porta do imóvel, cada um tem a sua) ou no vaso sanitário de residências em quatro regiões da capital paulista, com algum córrego próximo.
Objetivo do teste: verificar se a tintura expelida em meio à descarga doméstica chegaria a pontos de lançamento (canos) em córrego na vizinhança. Nos quatro pontos selecionados, deu positivo.
Uma das áreas escolhidas “pegava” do Palácio dos Bandeirantes para baixo. Engloba as ruas Combatentes do Gueto, Engenheiro Janot Pacheco, José Ferreira Guimarães e Pedro Gomes Cardim, as praças Vinícius de Moraes, Santos Coimbra e avenida Vicente Paiva. Também as ruas Marcelo Mistrorigo, José Pepe, Rafael Ielo e Cordisburgo.
Tinha informações de que durante os 12 anos em que foi ocupado por Geraldo Alckmin(PSDB) e os quase quatro por José Serra (PSDB), o esgoto do Palácio dos Bandeirantes nunca tinha sido tratado. E que até então a Sabesp jogava os dejetos da sede do governo paulista num córrego próximo (hoje sei que se chama Coimbra), bem no coração do Morumbi.
O córrego Coimbra passa canalizado sob o Condomínio Edifício Loft São Paulo I, rua Armando Lombardi, 800, no Morumbi. Depois corre a céu aberto num pequeno trecho. É paralelo a uma viela, na altura da rua Salim Izar com Guihei Vatanabe. De carro, fica a uns 5 minutos da sede do governo paulista.
Em 2010, estive lá duas vezes. A primeira, para observar o local. A segunda, para fazer o teste. Fotografei antes e após jogar o corante. Alguns minutos depois, a tinta já aparecia no córrego.
Isso demonstrou que:
1. O esgoto dessa região do Morumbi, incluindo o Palácio dos Bandeirantes era coletado, mas não era tratado. “Se fosse tratado, o corante não iria parar no córrego”, alertou na época o engenheiro Júlio Cerqueira César Neto, que durante 30 anos foi professor de Hidráulica e Saneamento da Escola Politécnica/USP.
2. A Sabesp é que jogava esgoto coletado no córrego Coimbra. Ou alguém acha que os moradores da região, incluindo os governadores paulistas, fizeram “algum gato” nas instalações de esgoto?
3. Lançamento em córregos paulistas de esgoto sem tratamento, portanto in natura, não é “privilégio” da periferia. Os dejetos de moradores de bairros nobres de São Paulo têm o mesmo destino.
Resultado: a reportagem Saneamento básico, esgoto do Palácio dos Bandeirantes é jogado em córrego , publicada no Viomundo em 13 de setembro de 2010.
No dia 20 de julho deste ano, fiz uma via-sacra pelos quatro córregos visitados em 2010. O mau cheiro exalado, sentido à distância, permanecia insuportável.
Inclusive no córrego Coimbra. A cerca viva, que o margeia, cresceu bastante. Em 2010, pegava principalmente o trecho de casas bonitas que existem do outro lado da rua. Agora, arbustos, bambu japonês e folhagens ocupam toda a sua extensão. Mas o fedor trai o paisagismo, revelando o que corre atrás: água com esgoto.
No próprio site da Sabesp, o córrego Coimbra já figurava entre os despoluídos. Mas como despoluído se ainda fedia tanto?! Dava pra ver fezes boiando!!!
Quis saber, então, da Sabesp, quais córregos de São Paulo já tinham sido despoluídos pelo Programa Córrego Limpo. Também que ações eram executadas. Como pesquisa no Diário Oficial revelou o contrato abaixo, pedi em seguida mais informações, como data da execução da obra.
19 de novembro de 2009-página 29.
EXTRATO DE CONTRATO
TP MO 39.850/09 – EXECUÇÃO DE OBRAS PARA IMPLANTAÇÃO DE REDES COLETORAS DE ESGOTO, NA RUA GUILHEI VATANABE E OUTRAS, VISANDO A MELHORIA DA QUALIDADE DA ÁGUA DO CÓRREGO COIMBRA, PERTENCENTE AO PROGRAMA CÓRREGO LIMPO – MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, UNIDADE DE NEGÓCIO OESTE, DIRETORIA METROPOLITANA – M. – R$ 1.286.819,13 -18/11/09 – COMPLEXA Construções Ltda. – 180
Domingo retrasado, 7 de agosto, retornei ao Coimbra. O conjunto de placas havia sido retirado. Teste com corante revelou que o esgoto do Palácio dos Bandeirantes já não é mais lançado nesse córrego. Mas por que o seu “perfume” continua nauseabundo?
Por e-mail, no dia 11 de agosto, assessoria de imprensa da Sabesp respondeu:
O contrato 39.850/09 teve início em agosto de 2010 e foi finalizado em dezembro de 2010, como previsto em cronograma.
Ainda há dois trabalhos a serem concluídos: 1) a ligação de dois prédios de flats que ainda jogam esgoto no córrego; 2) A correção de um vazamento de esgoto em local de difícil acesso.
À Sabesp [no Programa Córrego Limpo] cabe fazer o diagnóstico das condições das redes coletoras de esgotos, inspecionar imóveis para verificar se estão devidamente ligados à rede coletora, remanejar ligações domiciliares e industriais de esgoto, monitorar a qualidade da água dos córregos e promover a conscientização ambiental da população local. Já a Prefeitura deve promover a limpeza dos córregos (com a retirada de lixo), fazer a manutenção das galerias de águas pluviais e obras de contenção, além da notificação aos proprietários de imóveis que não estiverem devidamente conectados com o sistema público de esgotamento.
“NOSSO ESGOTO CONTINUA INDO PARA O CÓRREGO. A BOLA ESTÁ COM A SABESP”
O Coimbra fede porque esgoto continua sendo lançado lá. Se só de passar por ele, o estômago embrulha, para quem mora perto não é nada agradável. Compete em fedentina com vários córregos das periferias das zonas Norte, Sul, Leste e Oeste.
Os motivos estão na própria resposta da Sabesp: a ligação de dois prédios de flats que ainda jogam esgoto no córrego; 2) A correção de um vazamento de esgoto em local de difícil acesso.
Os flats em questão são os do Condomínio Edifício Loft São Paulo I, que ainda lançam esgoto no córrego Coimbra.
“No começo de 2011, a Sabesp esteve aqui e deu um prazo para fazermos uma caixa de extensão para coletar o esgoto e depois ela interligar à sua rede coletores”, conta Ednaldo Oliveira, responsável pela manutenção do condomínio. “A caixa está pronta há uns quatro meses, avisamos, mas até agora nada. O nosso esgoto continua indo para o córrego. A bola está com a Sabesp.”
Quanto ao vazamento de esgoto de difícil acesso, é obrigação da Sabesp resolvê-lo. Ponto.
Sobre as responsabilidades da Sabesp, a assessoria “esqueceu” de mencionar a vital implantação de coletores-tronco e interceptores para levar o esgoto até as ETES. Sem eles, o esgoto não vai para tratamento, é lançado in natura no córrego mais próximo.
No caso do Coimbra, a questão dos coletores está resolvida. Mas ainda faltam a ligação da caixa de extensão dos flats e o vazamento de esgoto de acesso difícil. Até lá o córrego, a mil metros do Palácio dos Bandeirantes, seguirá recebendo esgoto — menos, claro que em 2010 — e cheirando mal, em parte por causa da própria Sabesp que ainda não fez todo o serviço que deveria no local.
Já o córrego que corta a rua Tomazzo Ferrara, em Itaquera, Zona Leste ( o da região 2 da reportagem publicada em setembro de 2010), continua a receber esgoto da região por obra da Sabesp. Teste com corante feito nessa segunda-feira, 15 de agosto, comprovou isso.
“Na verdade, a Sabesp é a grande poluidora dos rios e córregos de São Paulo e não a população”, detona o engenheiro Júlio Cerqueira César Neto. Depois, zelosa, ‘vende’ nos comerciais que está preocupada com saúde, bem-estar, qualidade de vida e meio ambiente. Piada total.”
A propósito. Será que se o córrego da rua Tomazzo Ferrara ficasse próximo ao Palácio dos Bandeirantes e não na Zona Leste ele continuaria recebendo esgoto lançado pela própria Sabesp?
por: Conceição Lemes do Blog Vi o Mundo