Durante o funcionamento da Comissão Especial da Câmara dos Deputados que aprovou o chamado ‘PL do Veneno’ que pretende a plena flexibilização da utilização dos agrotóxicos no Brasil, um argumento forte utilizado pelos ruralistas foi a necessidade de se criar as condições para a internalização, no país, das ‘moléculas novas’, já utilizadas em países desenvolvidos, com maior eficácia agronômica e menor toxicidade. O pressuposto, portanto, seria que a atual legislação estaria barrando ou dificultando o uso dessas substâncias no Brasil, em prejuízo da agricultura, do meio ambiente, e da saúde pública.
Em seguida, toma posse o presidente Bolsonaro deixando explícita a prioridade absoluta do seu governo para o agronegócio. Para não deixar dúvidas, Bolsonaro definiu o nome da então Deputada Tereza Cristina, que presidiu a ‘Comissão do Veneno’, para assumir o Ministério da Agricultura. Para além da pasta da Agricultura, e como ‘vacina contra algum ambientalista’ eventualmente crítico aos danos ambientais do agronegócio, coube à Ministra a chancela ao nome do Ministro do Meio Ambiente.
Mal tomou posse, o governo deu início ao processo de deferimento do registro de agrotóxicos em escala sem precedentes no Brasil. Até a presente data foram 239 registros aprovados pela Ministra Tereza Cristina. Contestada, mesmo pela grande mídia, sobre a abusividade dessas liberações, a Ministra e o governo alternam os discursos. Ora alegam que se trata da liberação de ‘produtos genéricos’ para baratear os custos dos venenos para os agricultores, sem implicações no incremento no uso dos venenos, face a suposta inelasticidade desses produtos. Em outros momentos, a Ministra retoma o discurso para associar as atuais liberações de venenos à necessidade de viabilizar as tais moléculas modernas. Como assim? A legislação não impedia? Óbvio que não; tanto que após a posse do novo governo com Tereza Cristina Ministra, os ruralistas deixaram de atuar na Câmara dos Deputados pela aprovação do ‘PL do Veneno’, mesmo com a propositura já aprovada na Comissão Especial.
Na sequência, procuro abordar esses pontos da narrativa dos ruralistas e do governo que em última instância visam legitimar uma política pela liberalização e oferta em larga escala dos agrotóxicos no Brasil.
O documento está estruturado em três itens:
1 – Aborda o “imperativo” de uma oferta abundante e preços baixos para os agrotóxicos;
2 – Aborda o tema da suposta ineslasticidade do ‘consumo de venenos agrícolas’;
3 – Analisa os agrotóxicos registrados / renovados na União Europeia em 2018 e 2019 (até 03 de julho) para aferir as ‘moléculas novas’ no Brasil.
1. Oferta de agrotóxicos em abundância a preços baixos
Sustento a hipótese que, para os interesses ruralistas, na atualidade, sobrepondo a aprovação das novas moléculas, está a premência de uma oferta massiva dos venenos, capaz de baixar de forma significativa os custos das suas aplicações pelos fazendeiros, para dessa forma contribuir com as ‘margens’ na base primária do setor.
Não obstante condutas, não raras, pouco responsáveis em relação ao meio ambiente e à saúde pública, há uma racionalidade econômica impulsionando os fazendeiros por mais venenos. Abordei o tema no texto ‘O Governo Bolsonaro e os Desmontes nas Políticas para o Agrário’ elaborado em 05/07/2019, para atender demanda do MST. Em síntese, na agricultura produtivista brasileira, em particular, os agrotóxicos desempenham papel estratégico para impedir quebras na produtividade. Isto é central, pois há uma tendência de margens extremamente apertadas nas fazendas em razão dos efeitos da concentração econômica à montante e à jusante e, em particular, por conta de um cenário competitivo desigual na arena internacional imposto pelas subvenções públicas à agricultura pelos países desenvolvidos em valores, em dólar, 14 vezes maiores que no Brasil (caso dos EUA). Assim, a abundância na oferta, com preços baixos dos agrotóxicos constitui um dos pilares (não o mais importante) para a viabilidade econômica da grande exploração agrícola no Brasil.
Com essa motivação, combinada com as suas atitudes via de regra indiferentes com as questões socioambientais, as ações que os ruralistas têm desenvolvido para o crescimento da oferta e queda dos preços dos agrotóxicos são as seguintes:
1) a liberação em massa desses produtos, o que vem ocorrendo no atual governo;
2) viabilizar o fluxo massivo de agrotóxicos genéricos e similares desde os demais países do Mercosul. Para tanto, os ruralistas pressionam para a efetivação, no Brasil, das Resoluções GMC (Mercosul) nºs 48/96, 87/96, 149/96, 156/96 e 71/98, que tratam do registro e da livre circulação desses produtos entre os países integrantes do bloco. Patrocinaram a PFC nº 172, de 2018, liderada pelo Dep. Alceu Moreira, acionando o TCU para avaliar o cumprimento efetivo pelo Brasil da decisão do Tribunal Arbitral do Mercosul – TPR/MERCOSUL relativa à internalização das Resoluções antes citadas;
3) a terceira ação está relacionada com as subvenções aos agrotóxicos. Neste caso, em que pese os valores bilionários envolvidos, ainda assim os preços dos agrotóxicos observam trajetória ascendente; daí as ações para o aumento expressivo da oferta. Como exemplo do comportamento dos preços, cito os casos dos produtos ‘roundup’ no estado do Mato Grosso, conforme a figura abaixo:
2. Sobre a ‘inelasticidade’
Vale refletir sobre os discursos do coordenador de agrotóxicos do MAPA que na defesa do ritmo atual de liberações alega que o fato não teria implicações no maior uso dos produtos, dadas as suas características de inelasticidade.
Penso que com, ou sem a inelasticidade, a tendência do uso dos venenos agrícolas no Brasil é crescente por se tratar, entre os grandes players do mercado de commodities agrícolas, naquele com o maior potencial de expansão da área cultivada. E a incorporação de áreas ao processo agrícola será vital para o atendimento da demanda alimentar e de matérias primas no mundo tendo em vista a tendência global de crescimento decrescente da produtividade agrícola, e mesmo, da estagnação da produtividade em muitas regiões do planeta. No Brasil, a produtividade ainda se mantém com crescimento positivo nas regiões de expansão da fronteira mediante o uso ultraintensivo dos agroquímicos, o que não se verifica nas regiões de colonização antiga .
De outra parte, a consistência conceitual da tese da inelasticidade não se verifica na prática. Em primeiro lugar, é relevante frisar que ao s observar o período de 2000 a 2017, constata-se que o uso de agrotóxicos no Brasil cresceu à taxa de 7.8% ao ano, enquanto a área com grãos cresceu 3% ao ano, e a produção nacional de grãos cresceu 6.8% ao ano . Esses dados são sugestivos, mas não comprovam a inconsistência da tese da inelasticidade do uso de agrotóxicos.
Em segundo lugar, é claro que num contexto de preços elevados dos agrotóxicos, e supondo a simetria nos padrões de eficácia entre o produto de referência e o genérico, há a tendência de uma maior parcimônia dos fazendeiros no uso desses produtos; em outros termos, de observância da rigidez das prescrições. Mas esse próprio fato reforça o entendimento que, em virtude das circunstâncias peculiares do agronegócio no Brasil, o uso dos agrotóxicos reflete fenômeno de elasticidade-preço.
Suponha-se cenário de oferta abundante e preços baixos para os agrotóxicos como o perseguido pelo atual governo. Neste cenário, com temor de perdas de produtividade notadamente no caso brasileiro, o impulso natural do agricultor é o de negligenciar na parcimônia no uso dos venenos. Por exemplo, dificilmente o agricultor aguardaria o patamar de infestação, tecnicamente recomendado, para iniciar o combate à praga, inço ou doença. Mesmo aplicações adicionais de ‘segurança’ tendem a ser realizadas para evitar riscos à produtividade.
Portanto, o uso dos agrotóxicos no Brasil, pelas condições tropicais do país e, portanto, de elevado risco de produtividade física, afora as tensões da competitividade externa, tende a práticas abusivas desse uso por parte dos fazendeiros e, assim, tornando sem efeito a natureza de inelasticidade desses produtos.
3. O Brasil “precisa aprovar” as moléculas novas dificultadas pelas normas do país
Neste ponto, pretendo demonstrar a inconsistência, também, dos discursos segundo os quais a legislação e as normas brasileiras estariam impedindo a internalização das moléculas modernas, menos agressivas à saúde e ao meio ambiente, já utilizadas nos países mais avançados. Para tanto, utilizo como parâmetro os agrotóxicos liberados pela União Europeia nos anos de 2018 e 2019.
É claro que a utilização da UE como referência deve-se ao maior rigor, em escala global, daquele Bloco, na utilização dos venenos agrícolas. Tanto é que mais de uma centena de países (Brasil junto) estão pressionando a UE contra o complexo regulatório do Bloco sobre a matéria. Portanto, parte-se, da premissa de que na União Europeia estariam sendo utilizadas, na atualidade, as ‘moléculas modernas’.
Nos anos de 2018 e 2019, até 03 de julho, a União Europeia aprovou ou revalidou os registros de 29 agrotóxicos. De plano, chama a atenção que enquanto na União Europeia que envolve 28 países foram registrados / renovados 29 agrotóxicos no período considerado, no Brasil, somente até esta data de 2019 foram aprovados registros de 239 venenos agrícolas, ou mais de oito vezes. A propósito, o Brasil liberou mais agrotóxicos em 2019, do que a UE desde 2011 (228 ingredientes ativos aprovados).
Dos 29 ingredientes ativos registrados/renovados na UE no presente ano:
a) 19 são produtos químicos com graus de toxicidades variadas;
b) 08 são biopesticidas; e
c) 02, ainda que químicos, têm propriedades repelentes específicas.
Dos 19 produtos químicos:
a) 10 já possuem registros no Brasil, a saber:
- Acetamiprid – inseticida com ampla utilização: culturas do abacate, abacaxi, abóbora, abobrinha, acelga, agrião, alface, algodão, alho, almeirão, ameixa, amendoim, arroz, aveia, batata, batata doce, etc;
- Benzatone – herbicida pós-emergência usado nas culturas de amendoim, arroz, feijão, milho, soja e trigo;
- Carfentrazone-ethyl – herbicida pós-emergência nas culturas de algodão, arroz, batata, café, cana-de-açúcar, citros, eucalipto, mandioca, milho, pastagem e soja, e em pré-emergência na cultura de algodão, arroz, cana-deaçúcar, milho e melão;
- Trifloxystrobin – fungicida com aplicação nas culturas de abacaxi, abóbora, abobrinha, acelga, acerola, alface, algodão, alho, almeirão, ameixa, amendoim, arroz, aveia, banana, batata, berinjela, beterraba, brócolis, etc;
- Bordeaux mixture – famosa calda bordalesa; fungicida tradicional largamente utilizado no Brasil;
- Copper oxide – fungicida e bactericida;
- Copper hydroxide – fungicida e bactericida;
- Copper oxychloride – fungicida e bactericida;
- Tribasic copper sulfate – fungicida e bactericida;
- methoxyfenozide – inseticida usado no Brasil nas culturas de algodão, café, cana-de-açúcar, feijão, maçã, milho, soja, tomate e trigo.
b) Uma molécula (mefentrifluconazole) consta da lista do MAPA sobre os agrotóxicos prioritários em 2019 (Oficio-Circular nº 14/2019/SDA/MAPA). Trata-se de fungicida relativamente novo usado para controlar doenças em cereais; portanto, em processo de registro no Brasil;
c) Uma (Laminarin) acha-se em processo de consulta pública da ANVISA (n° 643, de 21 de maio de 2019) para que sejam apresentadas críticas e sugestões relativas à proposta de inclusão da monografia do ingrediente ativo. Trata-se de um bioestimulante;
d) as sete restantes, certamente, ou não são indicadas para as condições brasileiras, ou não são consideradas essenciais pelo governo e pelo agronegócio do país, caso contrário, estariam na lista das prioridades do MAPA. De todo o modo, são os seguintes princípios ativos:
- forchlorfenuron – estimulante de crescimento para uso específico em uva e kiwi, portanto, sem maiores impactos para o agronegócio no Brasil, e já está resgistrado na EPA desde 2004 e na UE desde 2011;
- propyzamide – composto químico do grupo das benzamidas e um herbicida introduzido pela Rohm and Haas, companhia química fundada na Alemanha (vinculada à Dow Chemical Company). Moléculas do grupo Benzamide já são utilizadas no Brasil, ainda que não encontrada a monografia específica da Propyzamide. Disponibilizada desde 1965, a substância já está registrada na UE desde 2012. Portanto, não tem nada de nova;
- Silthiofam – fungicida para sementes de cereais (mal-do-pé do trigo; take-all). Foi desenvolvido pela Monsanto e lançado em 1999; portanto, não se trata de molécula nova e liberada na UE desde 2008;
- Pethoxamid – herbicida pré-emergência e pós-emergência precoce para controlar algumas gramíneas e ervas daninhas de folhas largas. A pethoxamida foi desenvolvida pela japonesa Tokuyama Corporation em cooperação com a japonesa Arysta LifeScience e a alemã Stähler Agrochemie. Com processo de registro na UE desde 2000, foi finalmente registrada em 2006, tendo a validade expirada em 2016. Portanto, foi renovada pela UE. Sem monografia no Brasil, provavelmente por falta de interesse;
- Fenpicoxamid – esta, sim, parece uma novidade. Novo fungicida antibiótico com uma nova classe de química. Tem um baixo risco para a saúde humana. Parece degradar rapidamente nos solos e é instável na água. Também tem uma baixa toxicidade para as aves, mas representa um risco muito maior para os organismos aquáticos. Sem monografia no Brasil, mas com aplicação limitada ao trigo, centeio, arroz e banana;
- Flutianil –fungicida hortícola que, de acordo com a University of Hertfordshire, tem solubilidade muito baixa e é volátil. É persistente nos solos. Tem uma baixa toxicidade em mamíferos, mas existem algumas preocupações em relação aos efeitos sobre a reprodução e a carginogenicidade. Começou a ser comercializada em 2008. Sem monografia no Brasil, mas de aplicação limitada;
- Tribenuron – introduzido pela DuPont em 1986; portanto, molécula antiga. Registrado na UE desde 2011 e um herbicida de ação foliar, pós-emergente, usado para controlar ervas daninhas de folhas largas em cereais e outras culturas. Sem monografia no Brasil.
Quanto aos oito biopesticidas registrados (ou renovados) na UE em 2018 e 2019, vale dizer que traduzem clara prioridade daqueles países no avanço das formas de controle biológico. A propósito, na lista de prioridades do MAPA para o registro de agrotóxicos em 2019, não consta um único agente natural para o controle de pragas e doenças.
Os biopesticidas registrados/renovados em 2018 e 2019 na UE são:
a) Zoxamide – biopesticida, fungicida, usado no Brasil em aplicação foliar nas culturas de abóbora, abobrinha, alho, batata, berinjela, cebola, jiló, pepino, pimenta, pimentão, tomate e uva;
b) Metschnikowia fructicola – biopesticida indicado no biocontrole de uvas armazenadas. Sem registro no Brasil;
c) Ampelomyces quisqualis strain AQ10 – fungicida biológico usado para controlar oídio em frutas. Sem registro no Brasil;
d) Clonostachys rosea strain J1446- sem registro no Brasil, fungos de ocorrência natural, liberados na Europa desde 2011, usados para controlar vários patógenos pós-colheita. Trata-se de microrganismos com grande potencial de uso na agricultura, por controlar diversos patógenos fúngicos. É cosmopolita, presente naturalmente no solo, restos culturais e plantas daninhas, sendo encontrado em regiões temperadas, tropicais e desérticas. Pelo mesmo desde 2006 a Embrapa divulga estudos sobre este fungo;
e) ABE-IT 56 – Um novo uso de biofungicida para reduzir a incidência de doenças em algumas culturas de frutas e hortaliças. A substância está relacionada com ‘levedura de cerveja’ e é considerada segura nos alimentos. Não há evidência de impacto ambiental significativo ou efeitos negativos sobre a saúde. Sem registro no Brasil;
f) Pasteuria nishizawae – é uma bactéria formadora de micélios e endósporos tendo como alvo biológico o nematoide do cisto da soja. Tem registro no Brasil;
g) Beauveria bassiana (2 espécies registradas/renovadas na UE) – Inseticida microbiológico com uso agrícola aprovado para todas as culturas de ocorrência das espécies alvo, Bemisia tabaci raça B (mosca-branca), Cosmopolites sordidus (moleque da bananeira), Tetranychus urticae (ácaro rajado) e Dalbulus maidis (cigarrinha do milho).
Os dois repentes são:
a) Talc E553B – pó que não possui atividade pesticida, mas que segundo o Pesticide Properties Data Base, da University of Hertfordshire, demonstra alguma repelência por fungos e insetos. Portanto, mesmo sem monografia da Anvisa (neste caso, há a necessidade?) não teria tanta relevância para o agronegócio brasileiro;
b) Óleo de cebola – repelente natural previsto entre as substâncias do ANEXO VII da IN do MAPA (substâncias ativas e práticas permitidas para manejo, controle de pragas e doenças nos vegetais e tratamentos pós-colheita nos sistemas).
* Gerson Teixeira é engenheiro agrônomo, assessor da Liderança da Bancada do PT na Câmara dos Deputados, e ex-presidente da ABRA – Associação Brasileira de Reforma Agrária.