Em 1999, o então deputado federal Jair Bolsonaro concedeu uma entrevista à televisão. Ali, entre outras barbaridades, Bolsonaro disse que nada mudaria no país pelo caminho do voto. A solução, segundo o deputado, passaria por uma guerra civil e a morte de “uns 30 mil”, incluindo o então presidente Fernando Henrique Cardoso. Vinte e um anos depois, nesta terça-feira (2), cumpriu-se em parte o que defendia o atual presidente da República. Sob o risco de uma guerra civil por vontade de um chefe de Estado que quer “armar a população” em meio a uma pandemia, o Brasil registra 31.199 mil mortos por Covid-19, com outro diário: 1262 vítimas. No total, são 555.383 casos confirmados, dos quais 28.936 apenas nas últimas 24 horas.
“Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, se um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil. Começando com o FHC, não deixar para fora não, matando”, disse Bolsonaro em 1999. “Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente”. A perda da vida de 30 mil inocentes parece não ser o suficiente para que Bolsonaro pare de jogar roleta russa com a vida da população e comece a agir para proteger vidas.
No último domingo (31), o presidentre voltou a contrariar as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) de manutenção do distanciamento social e do próprio governo do Distrito Federal, que decretou a obrigatoriedade do uso de máscaras em Brasilia. Desfilando de cavalo, sem máscaras, Bolsonaro juntou-se a mais uma manifestação anti-democrática, colocando em risco a vida da população. Sem comando no Ministério da Saúde há quase 20 dias, quando Nelson Teich pediu demissão do cargo de ministro, o governo federal não apresenta nenhum plano ou estratégia de contenção da pandemia. Nesta terça, Bolsonaro disse que lamentava as perdas mas que morrer é o destino de todo mundo.
“O Brasil poderia ter evitado o colapso, o Brasil poderia ter preparado máscaras mais cedo, o Brasil poderia ter aprovado uma legislação antes do início da pandemia”, criticou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em entrevista à ‘CNN Internacional’. Para o líder petista, Bolsonaro deve ser responsabilizado por crime de responsabilidade pelas 30 mil mortes por Covid-19 no país. “Os governadores se tornaram inimigos, os prefeitos se tornaram inimigos, todos aqueles que defendem que o Brasil trate essa pandemia de forma responsável são considerados inimigos do presidente”, ponderou Lula. “O Brasil está passando por uma profunda crise de saúde, uma profunda crise econômica e uma crise de irresponsabilidade por parte do Presidente da República”, disse o petista.
“O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa vida tem que continuar, empregos devem ser mantidos”, anunciou Bolsonaro. Foto: Bruno Kelly.
Covid-19, fantasia
A escalada autoritária de afronta à Constituição, somada ao o descaso pela vida, ambos patrocinados livremente por Bolsonaro, encontram paralelos no crescimento vertiginoso de vítimas da pandemia do coronavírus no Brasil. Em 10 de março, pouco mais de duas semanas após a confirmação do primeiro caso de Covid-19 no país, Bolsonaro afirmou: “Obviamente temos no momento uma crise, uma pequena crise. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo”.
Uma semana depois, em 17 de março, a “fantasia” classificada por Bolsonaro havia feito a primeira vítima no Brasil. Naquele dia, o Ministério da Saúde anunciou o contágio de 349 pessoas. “Esse vírus trouxe uma certa histeria. Tem alguns governadores, no meu entender, posso até estar errado, que estão tomando medidas que vão prejudicar e muito a nossa economia”, disse o presidente. “A vida continua, não tem que ter histeria. Não é porque tem uma aglomeração de pessoas aqui e acolá esporadicamente que tem que ser atacado exatamente isso”.
‘Gripezinha’
Outra semana à frente, Bolsonaro, em um pronunciamento em rádio e televisão, criticou governadores pelas medidas de quarentena, ironizou a cobertura da imprensa sobre a pandemia e zombou do potencial de letalidade do vírus. Era 23 de março. “O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa vida tem que continuar, empregos devem ser mantidos”, anunciou.
E emendou a frase que já entrou para a história como a essência do negacionismo e da irresponsabilidade que marcariam seu comportamento diante da doença: “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico daquela conhecida televisão”.
‘E daí?’
Pouco mais de duas semanas se passaram e o país já contabilizava mais de 1 mil mortes em 10 de abril. No dia 28 de abril, 5 mil óbitos foram registrados. Intercalando ataques à democracia com discursos vazios pelo fim do distanciamento social para “salvar” a economia, incluindo participações em atos públicos, visitas a padarias e investidas contra governadores e prefeitos, Bolsonaro nunca deixou escapar de seu radar a estratégia de sabotagem do combate à pandemia.
Ao ser indagado sobre o crescente número de mortes, repondeu: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”. Menos de 30 dias depois, em 8 de maio, famílias brasileiras já haviam enterrado mais de 10 mil entes queridos.
E assim segue a tragédia a tragédia nacional, com o crescimento exponencial de casos e mortes em decorrência da doença indicando que as projeções de mais de 100 mil perdas de vidas pode estar cada dia mais próxima. Estimativas da empresa de consultoria americana Kearney apontam que o Brasil pode ter mais de 85 mil mortes até o fim de julho, isso em um cenário otimista, de acordo com reportagem da ‘CNN Brasil.
Ainda de acordo com a consultoria, num quadro mais pessimista, que revelaria um descontrole maior da epidemia, o Brasil pode ter 163 mil mortos no final de julho. Em alguns meses, o país pode chegar a Brasil a um número entre 1,2 milhão e 2,7 milhões de infectados.
As projeções da empresa não soam exageradas. Basta analisar a trajetória da pandemia a partir do registro da primeira morte, em 17 de março. Segundo levantamento feito pelo ‘G1’, o Brasil levou cerca de dois meses para chegar a 15,6 mil mortes. E apenas duas semanas para dobrar a marca e ultrapassar 30 mil óbitos. O país ocupa hoje o quarto lugar no ranking de mortes no mundo, atrás dos EUA, Itália e Reino Unido.
5 milhões de infectados
Ex-ministro da Saúde do governo Dilma Rousseff, Arthur Chioro chama a atenção sobre como a falta de testes afeta diretamente o enfrentamento da doença. Segundo o médico sanitarista, o nível de desarticulação do governo federal, somado às complexidades típicas de um país continental, será catastrófico. “Hoje, há 5 milhões de casos de pessoas infectadas no Brasil. E a baixa testagem continua sendo um grande problema”, aponta Chioro. “O Brasil conduz o enfrentamento da pandemia às cegas”, constata.
Com o agravamento da pandemia, o ex-ministro observa que é um erro os estados começarem a relaxar as medidas de isolamento social. “Nenhuma região do país tem condições de começar um processo de saída do lockdown. É muito prematuro”, diz Chioro. “É preciso consolidar primeiro a estabilização do número de casos da doença. Países que organizaram a saída só tomaram a decisão depois de duas semanas de números estáveis”, raciocina o ex-ministro, que prevê mais de 120 fatalidades em função da pandemia.
Enquanto diversos estados reiniciam atividades, o estado de São Paulo bateu nesta terça-feira (2) mais um recorde de mortes diárias e de novos casos: foram 327 óbitos e 6.999 mil novas infecções registradas. Desde o início da pandemia, o Estado contabiliza 7.994 mortes de um total de 118.295 casos. A taxa de ocupação de leitos na Grande São Paulo bateu 85%. Já no estado está em 73,5%, segundo o secretário de Saúde do estado de São Paulo, José Henrique Germann.
Da Redação da Agência PT
Imagem de destaque: Divulgação Agência PT