Elika Takimoto: sobre o coronavírus, nós e o capitalismo

A despeito de todo mundo saber que a taxa de letalidade é baixa comparada a outras doenças e que as principais vítimas são idosos ou pessoas já doentes, há uma insegurança fora do comum mesmo se estamos gozando de toda a saúde. Em primeiro lugar, porque temos em nosso meio de convivência pessoas que amamos que estão dentro do perfil mais vulnerável. Mesmo que a taxa de mortes seja baixa, a taxa de propagação é altíssima e, matematicamente, isso implica numa recontagem a todo momento sobre o número de mortes – o que estamos vendo na Itália, por exemplo.

Mas há muito mais a ser ponderado.

Sabendo que o período de incubação é de cinco dias, que o número de casos cresce em exponencial e que um percentual alto vai precisar ser hospitalizado ou isolado. Por consequência, como já estamos testemunhando, a transmissão do vírus já é comunitária, ou seja, a transmissão não é mais rastreável. Desta forma, qualquer um pode estar portando o vírus, se tornando, assim, um risco em potencial para os grupos mais vulneráveis. O efeito é em cadeia. Tudo se complica.

Para piorar, nada impede que a qualquer momento possamos ter um vírus similar, que se propaga com essa mesma ou maior velocidade, e com uma taxa de mortalidade muito mais alta. Não estamos livres de nenhuma outra intempérie, podem ter certeza. E, por isso, é sempre bom ver onde e como podemos melhorar.

Não é uma pandemia altamente letal, tecnicamente falando, como estamos cansados de ouvir de pessoas especializadas. Mas é nova e de origem ainda não totalmente conhecida. Não podemos prever sua evolução e isso gera uma grande incerteza. Em cada país está acontecendo de um jeito. Não há uma vacina eficaz. O vírus se espalhou rapidamente nos países mais ricos do planeta e, certamente, em todos os tipos de classes sociais. Ninguém está blindado.

É preciso também prestarmos atenção na dificuldade que países que usam a saúde como mercadoria estão tendo para conter o avanço do vírus. Nos EUA, Trump acabou de injetar 200 bilhões de dólares para socorrer as vítimas do Coronavírus. Será que este valor é tão eficaz quanto parece? O gasto poderia ser bem menor se o país possuísse um sistema público de saúde. Outro dado alarmante sobre os EUA é que para fazer o teste, gasta-se em média 3 mil reais. Caso dê positivo para o coronavírus, a pessoa, sem ter outra opção, vai precisar gastar em torno de 20 mil reais. Aliás, ela tem outra opção sim: não fazer sequer o teste. E daí, senhoras e senhores, avaliem a consequência disso nesse país que não tem uma saúde pública.

Em contrapartida, a China anunciou hoje, 12 e março, a superação da fase crítica da evolução do vírus. Não é o fim da transmissão em si, mas a redução considerável dos números de infectados demonstra a política efetiva que o Estado Chinês desenvolveu. Em doze dias foram construídos onze hospitais dedicados ao tratamento dos infectados pelo Coronavírus – além de outras ações integradas a diferentes áreas do governo.

Outra notícia: Cuba desenvolveu um medicamento que curou cerca de 1500 pessoas na China, além de estar desenvolvendo uma vacina que promete ser eficaz.

Enfim, esse vírus tem me feito pensar sobre sistemas de saúde. Estamos vendo que países com sistema público de saúde eficaz e que aplicam medidas drásticas como isolamento efetivo (não somente em escolas, por exemplo, porque isso não adianta nada já que as crianças precisam ficar com alguém, sendo geralmente, seus avós) e que têm um Estado forte estão sendo capazes de conter a pandemia com mais sucesso. Não é o caso da Itália onde cada região tem uma autonomia e um modo de agir que não dialoga, em alguns casos, com as demais.
Ainda assim, vimos como a mídia e muitos governantes aproveitaram para praticar o racismo e a xenofobia. Ficou explícita a forma usada pelos Estados Unidos de aproveitar o vírus  como uma oportunidade de degradar e isolar a China.

Nada, depois disso que estamos vivendo, nada mais pode ser enquadrado na categoria “isso não é problema meu”. Neste momento tenso que passamos, cabem várias reflexões. Se você vive em um país que tem uma saúde pública de muita qualidade, países como o meu que têm deficiências graves (não tão graves quanto a dos Estados Unidos) na saúde pública cujo governo limita por anos os investimentos na área, países governados por pessoas que vivem em uma alucinação permanente (como o meu), países que têm uma desigualdade social crescente (como o meu) são sim um problema para você que vive longe de mim porque vírus e bactérias se pegam pelo ar e andam de avião muito bem acomodados nas pessoas.

A tal liberdade econômica tão primada e valorizada pelos neoliberais não está me parecendo ajudar num caso sério como esse.

O que precisa ser feito  muita gente já sabe. É necessário que ninguém se mova para que o vírus seja erradicado. A dificuldade de efetivar algo tão simples está porque nos movemos em busca de dinheiro. Não é um problema somente de saúde, mas também um problema econômico e social.
A solução para isso não seria fácil em qualquer cenário, mas é possível que fosse bem menos complicado se tivéssemos um outro tipo de interação com o capital e com a natureza.

E aqui cabem algumas perguntas fruto de reflexões e intuições pessoais: em que medida nossa forma de praticar a agricultura em grandes escalas e de consumir animais na forma que fazemos contribuem para o aparecimento de doenças e surtos epidêmicos? Em que medida a interação agressiva do ser humano com a natureza ajudou o surgimento e a proliferação do Ebola, gripe suína, influenza aviária, zyka e coronavírus, dentre outros vírus, doenças e bactérias? Será que se mudássemos os nossos hábitos não minimizaríamos esse tipo de pânico que passamos ano após ano?

Temos uma economia globalizada, interdependente e frágil  – como ficou evidente agora para quem ainda duvidava – fruto desse capitalismo que jamais trabalhou pelo coletivo. A busca constante pelo lucro está intrínseca na nossa forma de agir no mundo, porém, estamos aprendendo que as complexas consequências sistêmicas são imprevisíveis e, possivelmente, devastadoras.

Não há nada mais a ser analisado pontualmente. O crescimento menor na economia, a queda de bolsa, a diminuição do turismo, de venda e de produção, a melhora da qualidade do ar inspirado dado uma menor emissão de CO2… Nem tudo piorou, o ar ficou mais limpo e agradeceu ao ver a quantidade de carros se esvair. Há relatos de pessoas respirando melhor na China, vejam vocês… Já sabíamos que muitos dos fatores que ajudaram no desenvolvimento do capitalismo são altamente  prejudiciais para o equilíbrio do planeta e, por tabela, à saúde coletiva. O que não imaginávamos é que algumas pessoas iriam respirar melhor por conta do coronavírus.

Vivemos em um sistema complexo, matematicamente falando. Não somos equacionáveis e passíveis de previsão. Mas acho que dá para aprender. E muito.

Outra coisa que fico aqui observando é que parece que o coronavírus é a verdadeira cortina de fumaça. No quadro internacional, parece que acabaram os bombardeios, que os imigrantes estão sendo bem tratados, que o terrorismo foi, este sim, erradicado. No nacional, não se fala mais, por exemplo, na devastação da Amazônia, na militarização das escolas, na suspensão da investigação do Flávio Bolsonaro, da truculência da polícia e na precarização do trabalho.

Aliás, falando nisso…

Fico aqui imaginando se, por conta do coronavírus, empregadas domésticas, porteiros, jardineiros, cuidadoras de idosos, coletores de lixo e tantos outros trabalhadores paralisassem não por uma greve, mas por uma demanda vinda do ministro da saúde, por exemplo. A classe média entraria em outro tipo de surto porque muitos não sabem sequer cozinhar, lavar a própria privada e muito menos trocar a fralda de uma pessoa idosa. Será que este governo que tanto subestimou o vírus daria condições de nossa população se sustentar em uma quarentena?

Mundo globalizado e viver em um só planeta tem dessas coisas: tudo que disse acima está conectado e não pode ser analisado isoladamente. O medo e a precaução produziram uma queda na produção, uma melhora considerável no ar da China, reduziu o preço do petróleo, paralisou o tráfego aéreo, fez a ciência ser levada a sério por quem estava desprezando seus efeitos e é possível que muita gente comece a perceber que ser rico não quer dizer ser independente se há uma dependência direta da exploração de uma classe trabalhadora para sobreviver. Talvez a humildade possa aparecer dentro de muitas casas depois dessa pandemia. É dramático mas pode ser também muito didático.

Foi descoberta uma nova forma de morrermos, mas o capitalismo nos mata de muitas outras maneiras. Depressão, ansiedade, diabetes, pressão alta, enfartos, fome, asma dentre outros fatores que nos abreviam a vida poderiam ser evitados se a gente se relacionasse de uma forma diferente. Há poucos lucrando em cima das péssimas condições de trabalho de uma grande classe trabalhadora. Mais cedo ou mais tarde, a conta chega.

Percebam: quanto menos desigual o país, menor a taxa de lucro. Ela é mais alta, a tal taxa de lucro, invariavelmente, nos países que possuem miséria e fome. Por isso, cabe repensar. Não conseguiremos acabar com o capitalismo, mas há formas mais justas e menos cruéis de se viver. Lucrar em cima de um colapso climático, de doenças, do medo, da vulnerabilidade como acontece, por exemplo, com quem tem ações na bolsa não me parece algo inteligente quando olhamos o todo e não somente uma parte.

Sei que está difícil ver o lado bom disso tudo. Podemos, no entanto, usar esse inferno como um bom local de reflexão. Fico aqui analisando e na esperança de que tudo isso nos leve e repensar esse capitalismo selvagem e sigo a sonhar com uma sociedade diferente.

Sinto há tempos que há uma necessidade de se fazer uma mudança radical nas políticas globais sistêmicas. Precisamos rever nossa economia e nossa saúde. Pensar em formas de consumo mais homeostático e com menos riscos. Um primeiro passo é assumir que temos uma parcela de responsabilidade nisso tudo.

Seguirei aqui com minhas reflexões. Por ora, senti necessidade de dividir um pouco dos meus devaneios com vocês.

  Elika Takimoto é doutora em filosofia e professora de Física do CEFET/RJ

Imagem de destaque: Reprodução

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