“Sonho com um novo mundo. Um mundo com mais humanismo. Não quero ser um algoritmo. Quero ter sentimento, solidariedade, paixão e coração. Não quero ser um número”, disse o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sobre o mundo pós- pandemia do novo coronavírus, em debate on-line promovido pela Universidade de Buenos Aires (UBA).
Junto de Lula, o presidente da Argentina, Alberto Fernández; o prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel; o ministro da Educação da Argentina, Nocolás Trotta; a professora de direito da UBA; Natalia Salvo; o presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados da Argentina, Eduardo Valdés; a jurista brasileira Carol Proner; e a secretária-executiva do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), Karina Batthiany.
Em sua participação no diálogo, intitulado “Pensar a América Latina depois da Pandemia covid-19”, Lula destacou que a Argentina tem, neste momento, algo que o Brasil não tem: um presidente preocupado com sua população. Fernández vem conduzindo o país vizinho com cautela. Adotou medidas sanitárias rígidas de isolamento social para combater a pandemia e medidas econômicas para garantir que a população passe pela pandemia com um mínimo de dignidade. O resultado é claro. A doença tem, na Argentina, as menores taxas de contágio, óbitos e de letalidade entre os membros do continente.
Leia a íntegra do pronunciamento de Lula
Enquanto o Brasil passa de 55 mil mortos e de 1,2 milhão de infectados, a Argentina tem 36.519 doentes e 1.150 vítimas. A diferença é brutal. “Tenho profundo orgulho de que Alberto está dando uma lição ao mundo. Como é bom cuidar do povo (…) Deixo minha solidariedade às vítimas na Argentina e no Brasil”, disse o ex-presidente brasileiro.
Ainda sobre o futuro pós-pandemia, Lula disse ser um cenário difícil de analisar, mas que tem uma certeza. “Países em que seus governos pensaram mais na população, como a Argentina, sairão desta crise mais fácil. Quando vejo as vidas salvas na Argentina, me dói muito que no Brasil o presidente chega a fazer piada com a tragédia”, disse. Bolsonaro, repetidamente, ridiculariza a pandemia e os mortos, além de ignorar a Ciência e chamar a covid-19 de “gripezinha” – questionado sobre os brasileiros mortos, disse “não ser coveiro” para comentar.
Economia para pessoas
Lula defendeu que a preocupação com a economia em tempos de pandemia é legítima. Mas que é dever do Estado socorrer as pessoas e preservar o máximo de vidas. “Há uma espécie de compreensão de que o momento é de gastar porque a economia existe em função das pessoas. O Estado pode proporcionar recursos e organizar a sociedade para ultrapassar esse momento tão difícil”, defendeu.
Portanto, o ex-presidente vê a ideia de “Estado mínimo” como uma falácia, uma ideia enganosa que, crise após crise, mostra que é ineficaz e excludente. “O Estado mínimo é um dogma. Não encontra explicação e não se justifica. O ‘deus mercado’ é um mito. Mais uma vez mais se revela incapaz de oferecer respostas a problemas do mundo. Exatamente como em 2008 e em todas as crises do capitalismo, o Estado que assume a responsabilidade de salvar.”
A crise do novo coronavírus, conforme Lula, ao seguir a mesma lógica, pode evidenciar, ainda mais, a importância do Estado. “Temos uma crise muito profunda. Queira Deus que os governantes aprendam que o Estado não pode ser colocado exclusivamente aos interesses do capital. A economia deve estar a serviço dos humanos e não o contrário. Essas transformações esperamos por meio da política”.
O ex-presidente encerrou sua fala com uma mensagem de esperança. “Por mais profundas que sejam as crises, depende de nós acendermos a luz das trevas. A política é o instrumento pelo qual podemos transformar sonhos em realidade. O que vai salvar a América Latina é a democracia. Precisamos recuperar a democracia no continente. Com um Estado forte, democrático. A pandemia mostra que o mercado não resolve nada. Quem cuida do povo é o Estado.”
Harmonia com o planeta
Para o ativista argentino e prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel, no mundo pós-pandemia será preciso recuperar a harmonia do ser humano com a natureza. “Sem isso, não vamos superar”, afirmou. Segundo ele, as relações sociais também precisam mudar.
“A devastação tem que cessar. É importante encarar os desafios e trabalhar profundamente nas mudanças que o mundo precisa. Faço um chamado à consciência universal. O chamado é pela coisa comum que está devastada. A crise que temos hoje é uma dívida do nosso povo.”
Fim do lawfare
A advogada e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carol Proner, disse que a América Latina deve repensar as garantias do sistema de Justiça, de forma a garantir estabilidade democrática. Segundo ela, o continente foi palco de uma perseguição jurídica contra lideranças progressistas – numa referência direta à Lava Jato, que tirou Lula da disputa eleitoral de 2018. Sob o falso pretexto de combater a corrupção, juízes, procuradores e policiais, atuaram para flexibilizar garantias constitucionais.
Em conluio com setores da “mídia hegemônica”, continuou, atuaram para promover a execração pública de líderes políticos, com o objetivo de abrir espaço para governos autoritários e neoliberais. Foi esse esquema que derrubou a ex-presidenta Dilma Rousseff e cassou os direitos políticos de Lula. Também assediou a atual vice-presidenta argentina, Cristina Kirchner, e outros líderes populares pelo continente.
“Enfatizamos, como defensores da democracia e da justiça social, que estamos a favor de uma luta rigorosa e implacável contra a corrupção, que só é possível com autonomia e independência dos organismos de investigação. Autonomias que foram possibilitadas, inclusive, pelos mesmos governos progressistas que foram atacados mais tarde.”
Democracias de baixa intensidade
O ministro da Educação da Argentina, Nicolás Trotta, expôs que, após 2013, o continente latino-americano passou a conviver com “democracias de baixa intensidade”. Antes disso, a região viveu “tempos exuberantes”, de desenvolvimento econômico e social, com integração entre os países. Mas esse modelo também apresentou limitações.
Agora, segundo Trotta, é preciso repensar a “institucionalização” dos processos de integração na América do Sul. Organismos como a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) foram praticamente desmantelados. Ele também defendeu a necessidade de articular junto ao empresariado comprometido com o desenvolvimento um “maior espaço de geração de riqueza e empregos. Mas tendo o Estado a capacidade de regular e estimular esse movimento.”
Trabalho e vida
O presidente da entidade de trabalhadores argentinos Confederação Geral do Trabalho (CGT), Víctor Santa María, disse que o mundo pós-pandemia precisa redefinir o conceito de “sucesso”. “O sucesso não é quem tem mais dinheiro no banco. Isso ficou demonstrado”. Para os empresários, segundo ele, “o êxito deveria ser medido sobre quem oferece mais oportunidade de empregos para o seu povo.”
Para os trabalhadores, o essencial, neste momento, é lutar pela preservação da vida. Por isso, segundo Santa María, apoiam o governo de Alberto Fernandéz, que vem tomando medidas rígidas de restrição do convívio social, como forma de combater a disseminação da covid-19. “Dessa crise, não sairemos sozinhos. Ou saímos todos, ou seguramente muitos ficarão pelo caminho.”
O mais querido
O deputado Eduardo Valdés, que preside a Comissão de Relações Exteriores da Argentina, afirmou que não houve fronteiras entre Brasil e seu país, quando se tratou de lutar pela liberdade do ex-presidente Lula. No país vizinho, essa batalha foi encabeçada por Esquivel. “O senhor presidente, quero que saiba, é o brasileiro mais querido pelo povo argentino”.
Segundo ele, Lula e Fernandéz, são herdeiros das palavras do ex-presidente argentino Juan Domingos Perón, defensor de um modelo de desenvolvimento autônomo e com inclusão para todo o continente. “Hoje, como diria Perón, o continente está dominado. Tomara que seja Fernandéz aquele que consiga romper com as cadeias da dependência”, afirmou.
Rede Brasil Atual
Foto: Ricardo Stuckert