A imprensa tem noticiado casos estarrecedores de abusos cometidos por empresas na hora mais difícil para qualquer família, quando esta é obrigada a sepultar um ente querido. A vil exploração comercial da morte tem sido uma triste realidade na cidade de São Paulo, após a privatização dos serviços funerários na gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB).
As denúncias vão desde a cobrança de preços extorsivos —aumento médio superior a 400% nos serviços que seriam mais baratos—, passando por restrições de acesso ao enterro social e enterro gratuito e até mesmo a tomada de jazigos para posterior revenda.
Além disso, as “vendas casadas” acabam inviabilizando que as famílias acessem serviços mais simples e baratos —o que, na prática, torna letra morta a tabela de preços que a prefeitura alega ser vinculante para as concessionárias.
Nesse contexto, para além do debate de mérito sobre a privatização, ganha centralidade a fiscalização dos contratos, que é dever do poder concedente, pois de nada adianta a prefeitura apresentar uma tabela de preços que não é praticada.
A teoria processual brasileira privilegia a busca pela verdade real, ultrapassando a mera formalidade. Fazer valer o que está no papel é obrigação do órgão fiscalizatório competente. Como está hoje, a tabela não passa de ato burocrático para eximir a prefeitura de suas responsabilidades.
O descalabro ensejou a ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 1.196, impetrada pelo PC do B junto ao Supremo Tribunal Federal, questionando a constitucionalidade de artigos das leis municipais 17.180/2019 e 16.703/2017, que autorizaram a concessão dos serviços funerários, por considerar que violam a dignidade da pessoa humana.
No dia 24 de novembro, o ministro Flávio Dino, do STF, concedeu medida cautelar para que as concessionárias pratiquem, no máximo, os valores anteriores à privatização, acrescidos pelo IPCA, decisão válida até o julgamento de mérito.
Em audiência de conciliação, a prefeitura apresentou a já referida tabela, insistindo na tese de que os preços hoje são mais baixos e os serviços são melhores do que antes. Alheio aos fatos, a administração Ricardo Nunes tenta impor a falsa narrativa de que as denúncias são falaciosas, que a medida judicial teve objetivos políticos e que a obediência à cautelar, na prática, causaria aumento.
A visão unilateral do município não proporcionou avanço. Nesta terça-feira (17), acontecerá nova rodada de diálogo, desta vez com o cotejo entre a tabela formal e os preços efetivamente praticados pelas concessionárias, para buscar medidas que impeçam a continuidade dos abusos contra a população.
O direito alemão define a dignidade da pessoa humana como “intocável”. “Observá-la e protegê-la é dever de todos os poderes estatais”, diz sua Lei Fundamental. No Brasil, ela aparece como fundamento da República, a partir do qual são erigidos os direitos fundamentais de primeira e de segunda geração trazidos pela Constituição.
A prevalência da dignidade da pessoa humana é incompatível com a inescrupulosa indústria da morte, que viola até mesmo o sagrado e milenar direito ao luto.
Orlando Silva
Deputado federal (PC do B-SP)
Simão Pedro
Deputado estadual (PT-SP)
Silvia da Bancada Feminista do PSOL
Covereadora em São Paulo
Hélio Rodrigues
Vereador (PT-SP)
Publicação original no jornal FOLHA DE S.PAULO