O “X Ato do Direitos Já! Fórum pela Democracia”, último dia 6 de outubro, colocou num mesmo palco não apenas forças que já compunham a coligação Lula-Alckmin 2022, mas lideranças históricas do campo progressista que não entrincheiravam no mesmo lado há mais de 20 anos, como Aloysio Nunes, José Gregori e Miguel Realle Júnior; o primeiro, referência na oposição aos governos petistas; os dois últimos, ministros do Governo FHC; este último, simplesmente um dos propositores do impeachment da presidente Dilma. Estas pessoas, num mesmo Ato, no calor de uma campanha nacional, ultrapassa meros apoios individuais ou eventuais; vemos a materialização de um novo pacto político, da reconstrução do campo progressista diante da evidente consolidação de uma unidade reacionária (bolsonarismo não é digno de ser chamado de campo conservador). Um dia após no aniversário de 34 anos da Constituição de 1988 (05/10), em uma semana que saltaram aos olhos apoios de FHC, Armínio Fraga, Persio Arida, Pedro Malan e Edmar Bacha, tomo o evento da ultima quinta-feira como pano de fundo para um balanço do legado que as estas adesões na candidatura da esquerda à presidência podem deixar num médio e longo prazo.
O Direitos Já surgiu de dissidências mais à esquerda de partidos de centro, que mobilizaram-se na campanha de Haddad em 2018, sob articulação do ex-membro do diretório nacional do PSDB Fernando Guimarães (filiou-se no PSB em 2020), com o qual colaboro a partir do segundo semestre de 2022. Envolveram no palanque desta semana, além de atores já envolvidos na Campanha Lula-Alckmin (Wellington Dias, Marina Silva, Penna, Walter Sorrentino, Gleisi Hoffmann, Haddad, Lucia França, Paula Nunes e o próprio vice da chapa) e dos já citados recém chegados, outras lideranças que até domingo eram adversárias, como PDT (Antonio Neto) e MDB (a própria Simone Tebet) e Cidadania (colaboração de Roberto Freire), e representantes de partidos que buscaram neutralidade no primeiro turno (PSD, na voz do deputado federal Marcelo Ramos).
Lideranças da sociedade civil que nunca se colocaram de uma forma tão aberta em uma campanha petista, como Neca Setúbal, Vanderlei Luxemburgo e Rogério Studart (economista consultor das Nações Unidas que veio dos EUA para participar). Na plateia, figuras da classe política, sociedade civil e intelectuais de envergadura semelhante.
Como manter esta nova coalizão? Como agregá-las em um novo projeto de nação? Como corresponder às suas demandas dadas as diferenças (mais estratégicas que de princípios)? É possível dela a gênese de um campo progressista renovado? A consistência no embate que protagonizará o novo cenário político depende da solidez desta costura.
Muito aquém de defender que possa existir uma fórmula mágica para tais desafios, há um debate internacional a respeito, e ele pode ajudar. A dificuldade na moderação de conflitos entre antagônicos indiscutivelmente é um dos maiores desafios para a ordem democrática, sobretudo em contextos radicalizados como vemos atualmente, e também fundamental em construções coletivas entre discordantes, o que é o caso de muitas vertentes unidas a partir de 3 de outubro contra o atual Governo Federal.
Em 2017 a Assembleia Geral da ONU aprovou a Resolução 72/130, que estabelece o dia 16 de maio como “Dia Internacional da Convivência em Paz”, uma iniciativa levada a cabo por países imersos em conflitos por muitos questionados quando a princípios democráticos, como Líbia e Cuba. Remete ao amadurecimento recente de uma cultura da não violência e cooperação entre os diferentes, como a 70/109 (2015) e 71/249 (2016), e na construção de uma cultura política da paz, como a 52/15 (1997), 53/25 (1998) e 71/252 (2016), todas confluindo para vários ODS’s da Agenda 2030, principalmente o ODS 16, que busca de mecanismos capazes de mediar conflitos violentos (mortes estão acontecendo no Brasil por motivação política, muitas!). Dentre várias outras iniciativas multilaterais, esta maturidade política intensificou o debate acadêmico sobre mecanismos de moderação e governança.
Giuseppe Michelino
Evento “X Ato do Direitos Já! Fórum pela Democracia” no último dia 6 de outubro
Além de estabelecer o “Dia Internacional da Convivência em Paz” como mobilização para reforçar o sentimento de tolerância, a resolução 72/130 resgata o Programa de “Ação sobre uma Cultura da Paz”, e em seus 7 encaminhamentos ressalto o terceiro e quarto: o terceiro trata da difusão desta cultura através da educação, já o quarto entra em pautas programáticas claras. As ações objetivas na gestão pública enfatizam que a paz só é possível com o desenvolvimento sustentável com o foco nas comunidades e mecanismos capazes de garantir dignidade para as minorias: há diferentes estratégias para o desenvolvimento, e no processo político umas prevalecem em relação à outras: como moderar o embate de força, como promover uma governança que não suprima minorias (inclusive, o empresariado, em determinados contextos, é minoria)?
Um dos cientistas políticos que conseguiu sistematizar de forma mais operacional esta questão é Aurelian Craiutu, da Universidade de Indiana, a partir da Institutional Analisys and Development (IAD), abordagem inspirada na Teoria dos Jogos que rendeu a Elinor Ostrom, o Nobel de Economia em 2009. Em síntese, ele define 7 princípios da moderação de conflitos: i) realismo, ii) contra a simplificação, iii) pluralismo (ninguém é portador da verdade absoluta), iv) estão dispostos a experimentar mudanças (tudo é questionável), v) firmam compromissos e abrem concessões (dentro da ordem constitucional democrática), vi) tolerância (vencer não é o mesmo que aniquilar; autocrítica e aprendizagem com o diferente), vii) moderação e diálogo (todos tem o direito de colocar seu ponto de vista). Moderação, muito longo de consistir em abrir mão de bandeiras, é um esforço em garantir dignidade para quem concede ou repensa (até mesmo para quem perde); é uma pré condição para que estes legitimem quem ganha sem o risco de ficar de joelhos.
Se Craiutu deixa claro que estes princípios são inatingíveis entre antagônicos num processo eleitoral, há vida após 30 de outubro. Mais que isso: para que o então pacto político entre diferentes perdure no legislativo para o próximo governo, é preciso que todas as forças tenham minimante suas pautas atendidas no resgate de um regime social democrático, uma motivação legítima. Estamos falando da reconstrução de um Estado de Bem Estar Social renovado, nas condições de uma Economia 4.0, de uma sociedade cujos nichos se articulam e desarticulam num piscar de olhos, munidos das redes sociais. A dificuldade em se construir maioria no Congresso a partir de consensos programáticos exigiu instrumentos questionáveis desde a redemocratização, condenados pela sociedade, inaceitáveis eticamente e contraproducentes quanto à efetividade.
Estamos em um momento histórico único, uma janela de oportunidade que merece todo o zelo de quem ama a democracia, aceita que o desenvolvimento sustentável é o caminho certo – admitindo que sem uma coordenação ambiental e socialmente responsável os impulsos privados podem levar a malefícios públicos – e não suporta todas as injustiças que saltam aos olhos. Um desafio precioso neste contexto é colocar na mesma mesa as entidades de formação política dos partidos que se juntam neste campo, sobretudo os que estavam fora da coligação Lula-Alckmin. Muitas vezes em silencia, estas instâncias partidárias tem o poder traduzir as diferentes matizes em projetos, permitindo um debate sem os “hormônios” restantes de disputas recentes para acordos sobre como trazer dignidade para as pessoas (e para os diferentes).
Pouco adianta lembrar o que cada um fez no “outono de 2016” ou na “primavera de 2018”. Estas lideranças que nos livraram de uma ditadura tacanha e frequentemente se atacaram em disputas insanas desde os anos 1990 podem sustentar uma história comum, um desejo único que remontam mais de meio século. Temos uma nação para voltarmos a nos orgulhar e esta semana encoraja para o máximo empenho (na linha do impossível) de quem fez a história de nossa recente, confusa e ameaçada democracia!
(*) Marcos Rehder Batista é sociólogo, pesquisador do NEA+ (IE-Unicamp) e do GVceapg (EAESP-FGV), coordenador adjunto de articulação política do “Direitos Já! Fórum pela Democracia