Até o lançamento do filme O Processo, em 2018, o trabalho da cineasta Maria Augusta Ramos era mais conhecido fora do Brasil do que em seu país. Antes do documentário sobre o impeachment da presidente Dilma Rousseff, a diretora já demonstrava um profundo interesse por o que chama de “teatro da Justiça”.
“Nós nos representamos a todo momento na vida social. Em uma audiência, cada parte representa um setor da sociedade”, comenta a cineasta. “Por ali, passam dramas pessoais e coletivos. Dessa maneira, a sociedade se revela nas suas mazelas, desigualdades sociais, preconceitos e incapacidades de lidar com coisas como o racismo.”
Com a trilogia Justiça (2004), Juízo (2007) e Morro dos Prazeres (2013), Ramos conduziu um mergulho nas estruturas e relações sociais que atravessam o sistema de Justiça no Brasil. Agora, a cineasta utiliza a mesma lente para analisar os processos políticos contemporâneos. Seu novo filme, Amigo Secreto, tem como foco a “Vaza Jato” e chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (16/06).
No documentário, a cineasta se debruça sobre o trabalho realizado por veículos de imprensa para organizar, interpretar e divulgar o vazamento de mensagens trocadas entre procuradores da operação Lava Jato e juízes, com destaque para o ex-ministro Sergio Moro.
O filme traz o público para dentro das redações do The Intercept Brasil e do El País, e dá voz a juristas críticos à operação que, na avaliação da cineasta, foram excluídos do debate público pela imprensa.
“Eles tentaram combater, questionar, criticavam, mas foram silenciados. A mídia optou por uma determinada narrativa, que era a da Lava Jato, e a Vaza Jato trouxe isso de uma maneira que era impossível negar. Tudo aquilo que já se sabia ficou escancarado”, afirma. “A Lava Jato foi uma farsa, uma grande encenação.”
Em entrevista à DW Brasil, Maria Augusta Ramos reflete sobre as consequências da operação, o cenário político do Brasil e a escolha de abrir mão da exclusividade exigida por festivais internacionais para rodar o filme nos cinemas brasileiros antes da eleição.
“Eles cometeram crimes e levaram o país a este momento tenebroso que a gente está vivendo hoje, com o risco enorme de, quem sabe, um golpe. Isso eu coloco na conta do senhor Sergio Moro“, critica.
DW Brasil: Amigo Secreto deve ser visto como uma continuação de O Processo?
Maria Augusta Ramos: Amigo Secreto é uma continuação de O Processo e, de certa maneira, O Processo também é uma continuação dos meus filmes anteriores, feitos dentro do universo da Justiça. Eu sempre disse que me interessa e me inspira pensar e refletir sobre a sociedade brasileira, as relações humanas, sociais e de poder, por meio do sistema de Justiça — o que eu chamo de “teatro da Justiça”. Principalmente depois, com O Processo, no qual a Justiça teve um papel fundamental no impeachment da presidenta Dilma, na remoção de uma presidenta da República que, na verdade, não havia cometido nenhum crime. O Amigo Secreto é uma continuação disso, pois me assusta e me dá muito medo o uso da Justiça, do que a gente chama de lawfare, o uso indevido do Judiciário para fins próprios, de remoção de inimigos políticos.
Na verdade, é uma guerra híbrida. Remover um candidato à eleição, como se fez com Lula, encarcerado em 2018 sem provas, é algo muito sério em um Estado de direito. Isso teve como consequência o que a gente está vendo agora. Não só a eleição de Bolsonaro, mas a consequência disso, a fragilização das instituições democráticas, da própria Justiça, das instituições jurídicas, do STF – que agora está sendo diariamente atacado – e do Congresso.
Houve uma demonização da política e dos políticos. Isso é muito sério e vai corroendo a democracia. Tanto o Congresso quanto o sistema de Justiça são essenciais. Assim como o Executivo, são pilares da nossa democracia moderna. É impossível, para mim, não fazer um filme sobre isso, não tentar refletir sobre as consequências da Lava Jato e como nós chegamos aonde estamos agora, nesse momento trágico do país, muito crítico e muito perigoso.
A linguagem de ambos os filmes demonstra uma forte consciência sobre o viés da representação nos tribunais – o “teatro da Justiça” a que você fez referência. Na sua leitura, a Lava Jato foi uma encenação?
Certamente. Quando eu falo do teatro da Justiça, eu não necessariamente me refiro à Justiça como uma farsa, de maneira alguma. Mas a Lava Jato foi uma farsa, uma grande encenação. Nós nos representamos a todo momento na vida social. Em uma audiência, cada parte representa um setor da sociedade: o juiz representa a Justiça; o promotor, a sociedade civil; o acusado representa a si mesmo. Por ali, passam dramas pessoais e coletivos. Dessa maneira, a sociedade se revela nas suas mazelas, desigualdades sociais, preconceitos e incapacidades de lidar com coisas como o racismo. É o caso também dessa grande divisão que existe na sociedade brasileira, entre o Brasil “com Z”, a classe média que tem acesso à educação, à saúde e uma série de coisas, e uma classe humilde, que não tem acesso a isso tudo. Ou, pelo menos, durante muitos anos não teve e agora, com o governo Bolsonaro, voltou a não ter. Essa diferença é muito nítida nesse cenário, mas isso não significa que o cenário das audiências, do que eu chamo de teatro da Justiça, seja uma encenação, uma farsa, de maneira alguma. Mas, no caso da Lava Jato, sim, ela fez uso abusivo da farda, do ritual da Justiça, para legitimar um processo arbitrário, que era uma grande farsa, uma grande encenação. Precisamos ter muito cuidado em relação a isso. O lawfare consiste em usar mecanismos jurídicos contra um inimigo político, que pode ser o representante de um outro partido, um país ou uma empresa, por razões políticas, geopolíticas, razões que não são necessariamente ligadas, de fato, ao Direito.
É sempre desafiador analisar processos históricos no calor dos acontecimentos. A partir do seu filme, como dimensionar o peso da Vaza Jato na história política recente do Brasil? Foi um divisor de águas?
Eu acho que sim, embora seja importante lembrar que, antes de as mensagens serem vazadas, muitos advogados e juristas denunciavam as violações e arbitrariedades. Eles tentaram combater, questionar, criticavam, mas foram silenciados. A mídia optou por uma determinada narrativa, que era a da Lava Jato, e a Vaza Jato trouxe isso de uma maneira que era impossível negar. Tudo aquilo que já se sabia ficou escancarado. Nesse momento da Vaza Jato, alguns veículos da imprensa se redimiram um pouco, porque certamente a imprensa teve um papel devastador, fundamental na devastação do sistema político, do Brasil e na prisão de Lula. Ali, houve a possibilidade de a imprensa realmente fazer a sua função, de investigação, de uma procura pela verdade do fato em um processo de pesquisa jornalística ético, honesto, extremamente preciso.
Essas mensagens não estavam prontas, eram mil páginas de mensagens. Os jornalistas, tanto do Intercept como do El País, da Folha, da Agência Pública e mesmo da Veja, fizeram um trabalho investigativo para entender e embasar as reportagens feitas a partir dessas mensagens. Havia um trabalho incrível feito ali, que pode parecer simples, mas não foi. Dentre milhares de mensagens, era preciso descobri-las e conectar essa mensagem com o momento, o contexto em que foi emitida. Foi um trabalho incrível, que é o trabalho da imprensa. A imprensa é essencial para a democracia.
O filme fala disso: por um lado, a imprensa precisa fazer sua mea-culpa por ter acreditado cegamente na Lava Jato, nos procuradores, e por ter divulgado uma só narrativa, um só lado da história. Por outro lado, o filme também mostra que existe, sim, e que é necessário para a democracia um jornalismo ético, investigativo, que faz também, de uma certa maneira, o que a Justiça tem que fazer, que é a procura da verdade, a busca do fato. Versões, todos temos, mas existe um fato. A Terra não é quadrada nem plana, a Terra é redonda, isso é um fato. Eu acho que se passou por cima de fatos importantes e se acreditou em versões que não eram verdadeiras, não eram honestas.
O filme traz a cena de um ato na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) em apoio ao jornalista Glenn Greenwald, no momento em que ele era atacado no Brasil pela divulgação das mensagens no The Intercept, com a presença de vários políticos da esquerda. O viés “militante” fere a credibilidade da Vaza Jato?
Primeiro, é o seguinte: não existe jornalismo imparcial, como não existe cinema imparcial. Isso, de nenhuma maneira, fere o trabalho deles. Não sei se você se lembra bem, mas depois das primeiras reportagens que foram publicadas, eles estavam sendo atacados pelo presidente da República. Aquele foi um ato em defesa do Glenn, do Intercept e dos repórteres. De forma alguma isso fere a qualidade do trabalho que eles fizeram. Como o (Leandro) Demori [ex-editor-executivo do The Intercept Brasil] diz naquele momento: leia os artigos, pense, reflita. Agora, tem um emoção ali, como todos nós estamos vivendo. O Demori é um cara emotivo, diferentemente, por exemplo, das jornalistas do El País, que também são personagens importantes no filme.
Eu acho que a destruição do país e a farsa que a Lava Jato montou foram tão tenebrosos, que é difícil não ser emotivo. E não só para a esquerda, mas todo o lado progressista do país, as pessoas que têm uma capacidade de reflexão, de pensar diante dos fatos e ver que aquilo ali foi uma farsa.
É impossível se manter completamente distante e objetivo. Novamente, eu acho que o jornalismo não é objetivo, não existe essa imparcialidade. Assim como no cinema documental, o importante é haver um comprometimento ético, de busca da verdade do fato, em que você se coloca como opinião, tendo um lado, mas baseado em fatos, em uma tese comprovável. Eu não vejo dessa maneira, tanto as reportagens do Intercept como de todos os outros veículos. É importante também recordar isso: não foi só o Demori, foi um grupo de jornalistas do Intercept e jornalistas de vários outros veículos, como El País, Folha, Veja, Agência Pública, que passaram horas e horas analisando, destrinchando, investigando, para conseguir escrever as matérias e dizer o que realmente é fato, o que realmente aconteceu.
Fiz essa pergunta porque as críticas à Vaza Jato feitas por setores à direita vinham nessa linha.
Pois é. Provavelmente vão me perguntar por que o Moro não foi entrevistado, e eu já vou dizer aqui. O El País pediu uma entrevista ao Moro. Ele disse que não tinha assessoria de imprensa e que estava com a agenda lotada. Nós falamos com dois procuradores que se negaram. Fica difícil, né?! Ainda assim, da mesma maneira que eu fiz em O Processo, toda fala, toda explicação… O Sergio Moro aparece no momento em que ele se explica sobre a renúncia ao Ministério da Justiça no Congresso, quando ele coloca a razão pela qual estava saindo. Depois, na filiação a um partido político. De maneira alguma sua fala é negada, está ali presente no filme, inclusive durante a audiência com o presidente Lula.
Mas eu não vou negar que realmente, diante dos fatos, das reportagens, de tudo que vivi e ouvi, eu não posso aceitar o modus operandi da Lava Jato. Como disse o ministro [do STF] Gilmar Mendes, em fala que aparece no filme, você não combate crime cometendo crime. Foi isso que eles fizeram, cometeram crimes e levaram o país a esse momento tenebroso que a gente está vivendo hoje, com o risco enorme de, quem sabe, um golpe. Isso eu coloco na conta do senhor Sergio Moro.
Foi uma escolha sua que o filme estreasse no Brasil antes de seguir para o circuito internacional?
Sim, claro, foi uma decisão minha junto com a coprodutora brasileira, a Vitrine, que é distribuidora também. Era uma decisão nossa exibir o filme antes das eleições. Para isso, tinha que ser exibido agora, e por isso não era possível ir para festivais internacionais antes. De um lado, é claro que a decisão de exibir primeiro aqui dificulta a escolha do filme para festivais importantes, porque eles querem exclusividade. Mas, por outro lado, era uma necessidade muito mais forte do que o que seria bom para a carreira do filme, ou para mim, pessoalmente. É muito importante esse filme sair agora. Espero que as pessoas assistam e pensem muito bem, reflitam antes de votar, antes de tomar a decisão.
O filme tenta levar o público a refletir sobre as consequências da Lava Jato no presente, as consequências que a gente está vivendo nos últimos quatro anos a partir desse instrumento que foi usado na Lava Jato. É importante olhar a questão das violações, das arbitrariedades, e o prejuízo que representou não só para a classe política, mas para a economia. O prejuízo foi infinitamente maior para a economia brasileira, em termos de desemprego, de empresas fechando, sendo destruídas e tendo que pagar multas bilionárias no exterior, como a Odebrecht e a Petrobras. Tudo isso é uma consequência da Lava Jato, que atingiu o país, a Petrobras e a sociedade brasileira no coração. Essa destruição certamente serviu a interesses que não os nossos.
João Pedro Soares DW replicado no Brasil de Fato