Levados aos cárceres da ditadura militar, foram confrontados com seus pais, nus, machucados, recém-saídos do pau-de-arara ou da cadeira do dragão
A Comissão Estadual da Verdade, presidida pelo deputado Adriano Diogo, coleta essa semana depoimentos de sobreviventes da ditadura militar (1964-1985), que neste período eram crianças. São testemunhos sobre o que eles e seus pais sofreram.
Eles foram sequestrados e escondidos nos centros clandestinos de repressão política. Afastados de seus pais e suas famílias, foram enquadrados como “elementos” subversivos pelos órgãos de repressão e banidos do país. Foram obrigados a morar com parentes distantes, a viver com nomes e sobrenomes falsos, impedidos de conviver, crescer e conhecer os nomes de seus pais.
Levados aos cárceres da ditadura militar, foram confrontados com seus pais, nus, machucados, recém-saídos do pau-de-arara ou da cadeira do dragão. Foram encapuzados, intimidados, torturados antes de nascer. Filhos de guerrilheiros que hoje estão desaparecidos, nasceram em prisões e cativeiros. Sofreram torturas físicas e psicológicas, como Carlos Alexandre Azevedo, que com 1 ano e 8 meses apanhou e foi levado ao Dops. Anos depois, em fevereiro deste ano, aos 39 anos, não aguentou mais resistir e suicidou-se.
Depoimentos
“O que sofremos é algo invisível. Há uma marca que passa de geração para geração e é difícil entender onde isso me afetou. Não sei como, mas afetou”. Dessa forma Cecília Capistrano, neta de Davi Capistrano, militante do PCB e desaparecido em 1974, tentou descrever os efeitos de ter crescido em uma família de militantes políticos presos, torturados e mortos pelo regime militar
As dificuldades enfrentadas pela mãe após o desaparecimento do marido foram enfatizadas por Rosana Momente, filha de Orlando Momente, militante do PCdoB e desaparecido em 1973. Rosana contou que só soube a verdade sobre seu pai aos 15 anos. Ele entrou na clandestinidade em 1963, um ano após seu nascimento. Sua mãe, com dificuldades financeiras, precisou trabalhar como empregada doméstica, sendo obrigada a colocar a filha em um internato. “A vida no internato é muito solitária. Aprendi o que é depressão na infância”, concluiu.
Filho de Paulo Fontelles e Hecilda Fontelles Veiga, Paulo Fontelles Filho, nascido na prisão, relatou o que sua mãe, grávida, sofreu ao ser presa. Foi levada à Polícia Federal onde, diante de sua recusa em dar informações a respeito do marido, ouviu, sob socos e pontapés, que “filho dessa raça não deve nascer”. No dia de seu nascimento, Hecilda foi levada ao hospital onde o médico induziu o parto e fez o corte sem anestesia. “Presto aqui minha homenagem a essa guerreira que nunca se deixou dobrar”, disse Paulo.
“Queria poder levar meus filhos ao túmulo de meu pai”
Também depôs Tessa Lacerda, que contou que seus pais, Gildo Macedo Lacerda e Mariluce Moura, foram presos em outubro de 1973, em Salvador. Mariluce estava grávida, e foi libertada dias depois. Gildo, três dias depois, morreu sob torturas. Tessa relatou a dor da ausência do pai, embora sua mãe tenha se casado depois.
“O fato de não ter um corpo para que eu faça o rito, impede que eu possa ter o luto por essa morte”, falou Tessa, referindo-se ao fato de o corpo de Gildo nunca ter sido entregue à família, por ter sido jogado em vala comum, onde se degradou, impossibilitando a identificação. “Queria poder levar meus filhos ao túmulo de meu pai. É uma história que não fecha, não é justa com ninguém”, disse.
Até os 18 anos de idade, Tessa não tinha o nome do pai na certidão de nascimento, o que lhe causava muitos constrangimentos. Para obter esse reconhecimento, teve de entrar com ação judicial. Segundo sua mãe, Mariluce Moura, havia uma certidão de casamento, mas com os nomes falsos que usavam na ocasião. Só com a Lei 9.140/1995, o governo federal reconheceu as mortes dos desaparecidos, então o registro pôde ser feito.
Recentemente, afirmou Tessa, a família decidiu processar o Estado brasileiro pela morte de Gildo Lacerda. Por isso, ela submeteu-se à avaliação psicológica que, embora não tenha apontado danos, indicou a existência de insegurança, baixa auto-estima e medo ” Tessa não dorme com as luzes apagadas até hoje. “São coisas que carrego da infância e não consigo superar”, finalizou.