Sem alimentos e sem salários, merendeiras entram em greve e escolas suspendem aulas

Imagem: Ação Popular

São Paulo – Ao menos oito escolas e centros de educação infantil e adulta das regiões do Ipiranga e São Mateus, na zona leste de São Paulo, tiveram as aulas presenciais suspensas nessa quarta-feira (17) por falta de alimentos e de merendeiras para a preparação de refeições aos alunos. Funcionárias da Singular Gestão de Serviços, terceirizada que presta serviços de preparo e distribuição de alimentos à Prefeitura de São Paulo naquelas unidades, entraram em greve. Os trabalhadores denunciam que estão há dois meses com salários atrasados e há três sem receber vales transporte e refeição.

Trabalhadoras relataram à RBA que têm levado alimentos de casa para a preparação das refeições para os alunos e financiado a própria condução até o trabalho.  “É difícil, porque a maioria das trabalhadoras são mães solo, pagam aluguel e não recebem pensão. A maioria das minhas parceiras são assim. Então nós dependemos disso (do salário em dia). Não venho trabalhar apenas pelo salário. Trabalho também porque gosto, amo cozinhar, mas assim fica difícil. Eu saio daqui e choro, porque vejo essa situação. É lamentável”, conta uma das merendeiras, também mãe e única responsável por uma criança, menor de 10 anos. Ela pediu para não ser identificada por medo de represálias. 

Pagando do bolso

“Já chegaram a faltar coisas na cozinha e eu e outra funcionária, que trabalha comigo, tivemos que trazer da nossa casa para alimentar as crianças. Eu pensava ‘não vou trazer, porque é obrigação da empresa’. Mas é de cortar o coração, porque ela não está nem aí, ela não vai mandar. Ou tiro da boca do meu filho para trazer, ou eu falo para a diretora que não tem o que servir. Por exemplo, eu estou sem hortifrutis, não tem frutas e nem verduras. Semana passada eu servi docinhos para as crianças por três dias seguidos”, descreve.

Diretores de escolas atendidas pela Singular confirmam as denúncias das merendeiras. Em uma delas, a responsável conta que só pôde garantir o funcionamento da instituição nesta quarta porque a cozinheira pediu dinheiro para arcar com o transporte até a unidade.

“Nós atendemos 400 crianças e chegaram 60 maçãs e 180 bananas. E outra: para atendermos a capacidade total de alunos, sempre tivemos três funcionárias, mas só estamos com duas agora e elas não estão recebendo. Ontem eu dei dinheiro do meu bolso para uma delas vir hoje. Ela queria vir por causa das crianças e não tinha como. E se elas não vêm eu tenho que suspender o atendimento porque não dá para ficar na escola sem alimentação. Ainda mais com a população que a gente atende”, explica a diretora, que também pediu sigilo de sua identidade. 

Modelo da terceirização

A Singular tem contratos com a prefeitura de São Paulo desde 2016, quando a empresa atendia como Denjud Refeições Coletivas Administração e Serviços Ltda. Em agosto deste ano, a empresa fez uma oferta à Secretaria Municipal de Educação (SME), via pregão eletrônico, de R$ 4,5 milhões apenas para prestar os serviços mensais do Lote 7, do Ipiranga. Três meses antes, contudo, um grupo de merendeiras de escolas públicas do Rio de Janeiro também fizeram uma denúncia semelhante contra a empresa, de atraso de dois meses de salário. 

Há mais de duas décadas no cargo, a diretora avalia que o modelo de terceirização não é adequado para garantir o atendimento das necessidades da comunidade. Segundo ela, a Secretaria Municipal de Educação (SME), responsável pela licitação, também tem sido negligente na fiscalização. 

“Nós (diretores) não entendemos como essa empresa está até hoje, porque são muitos problemas apontados. Houve uma época em que ela (a Singular) atendia de acordo, mas agora não. (…) Nós somos orientados a relatar tudo o que acontece de errado, o que não ocorre conforme o contrato. Só que ela (a SME) tem que resolver. Não adianta todo mês eu relatar que tem tal problema, que estão faltando funcionários, e ficar tendo que dar um jeitinho para atender. Essa fiscalização a gente já faz aqui, mas queremos resolver o problema. São 200 crianças de manhã e 200 à tarde que estão lá”, contesta. 

Greve continua

A gestão de Ricardo Nunes (MDB), por meio da SME, informou que notificou a empresa Singular por descumprimento de contrato. Segundo a pasta, “a empresa será multada por não cumprir as cláusulas contratuais e, caso a situação perdure, haverá rescisão do contrato juntamente com a convocação da segunda colocada na licitação para assumir o atendimento”. A secretaria afirma ainda que os estudantes seguirão com recebimento de merenda não manipulada.

RBA tentou contato com a Singular, mas não foi atendida. 

Em comunicado aos funcionários, a empresa alegou que, com a pandemia de covid-19,  o faturamento “despencou em consequência à suspensão das atividades escolares” o que teria provocado “grandes prejuízos financeiros”. “Com os recursos próprios todos já empregados nestes 20 meses de pandemia e sem faturamento compatível com os gastos operacionais, nos obrigaram a esses constantes atrasos salariais e benefícios (sic)”.

Após as merendeiras entrarem em greve, a Singular pagou parte dos salários atrasados. No entanto, de acordo com relatos à reportagem, não foram depositados os vales transporte e refeição dos últimos dois meses e o de novembro. Por conta disso, a paralisação deve seguir hoje. 

Insegurança alimentar

O Conselho de Alimentação Escolar (CAE) da capital paulista, que vem acompanhando a situação da categoria, cobrou da gestão Nunes alteração no modelo de terceirização do fornecimento de merenda. O órgão lamentou que os problemas na oferta e nas condições trabalhistas ocorram neste momento de avanço da fome e da insegurança alimentar.

“Pandemia, inflação alta, incompetência administrativa e a falta de alimentos nas escolas, se conversam para a não garantia de subsistência mínima às famílias. Estamos em um momento em que a pobreza se espalha pelo Brasil. O custo de vida e o desemprego estão em alta. Com isso, em muitas regiões as crianças só têm a escola para se alimentar, pois muitas famílias se encontram em vulnerabilidade social”, criticou o CAE. 

Redação  Clara Assunção | RBA

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