Em meio à carestia dos alimentos, por que o arroz do MST é mais barato?

Nas últimas semanas, o Brasil viu voltar à tona um termo usado nos anos 1980: carestia dos alimentos. Os preços dispararam no país em meio à crise econômica e sanitária, causada pelo coronavírus. Segundo o Instituto Brasileiro de de Geografia e Estatística (IBGE) a inflação desde o início do ano foi de apenas 0,7%, mas a comida disparou 6,10%. O preço do arroz subiu 19,3%, o feijão preto 28,9%, a farinha de milho 8,1% e o óleo de soja 18,6%. Em entrevista exclusiva ao programa Fórum Onze e Meia, exibido no canal da Revista Fórum no Youtube, João Paulo Rodrigues, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), explica o porquê da crise. Confira os principais trechos.

Revista Fórum – Por que estamos passando por essa crise de alimentos?

João Paulo Rodrigues – O importante é que as pessoas possam ter noção do que é a política de abastecimento do Brasil. Vou tentar simplificar uma coisa complexa: Temos quatro “caixinhas” onde se guarda comida no Brasil. A primeira “caixinha” é a mais conhecida no Brasil: o famoso agronegócio. Essa caixinha se autoproclama de produzir toda comida brasileira. Mas na prática 80% do que o agro produz é soja. E para que essa soja? Para exportação, para ração animal, para óleos vegetais, para exportação como commodities. E os outros cerca de 20% é carne, é milho, cana de açúcar para etanol e eucalipto. Basicamente, esse é o grosso da produção do agronegócio.

A segunda “caixinha” está nas grandes redes de supermercado e nos grandes complexos agroindustriais que guardam e compram antecipadamente a produção. De quem eles compram a produção? Da pequena agricultura familiar e dos grandes. Eles têm áreas que inclusive produzem algum tipo de produto. Quem são eles? As grandes redes de supermercado que têm as ações nas bolsas de valores e que dominam a famosa cadeia de alimentos no conjunto da produção brasileira como um todo. Ela é quem justamente determina o preço dos alimentos no Brasil.

A terceira “caixinha” é a agricultura familiar, a agricultura camponesa, a dos pequenos agricultores e da reforma agrária. Todos eles juntos produzem aproximadamente 70% do que se consome na mesa do brasileiro todos os dias. Mas essa caixinha passa por dois grandes problemas: não tem financiamento e não tem uma política estatal de preço.

E, por fim, uma quarta caixinha, que não tem funcionado, é a caixinha estatal de uma empresa brasileira, a Conab [Companhia Nacional de Abastecimento], que tinha três grandes tarefas no tempo que ela funcionava, em especial no governo Lula.

Primeiro, financiava a compra direta de produtos da pequena agricultura e ajudava a potencializar a oferta de produto em todo o mercado.

João Paulo – A Conab não tem estoque mínimo de nada. Ela acabou como política reguladora de alimentos. Ela arrendou seus barracões para o agronegócio e não existe hoje do ponto de vista social da produção agrícola brasileira. O que significa isso? Que hoje o Estado brasileiro terceirizou tudo para o mercado organizar a política de abastecimento brasileiro. E a tragédia está aí. 20 a 45% de aumento no conjunto da cesta básica brasileira e, em especial em produtos sensíveis, como no caso do feijão e do arroz, e outros derivados de outros produtos que a gente precisa para a cozinha no dia a dia. Esses são os principais elementos. É claro que a pandemia aumentou o consumo. Os números dizem isso, as pessoas estão em casa consumindo mais. É verdade que tem uma derivação do dólar, mas o dólar não explica, porque os produtos que chegaram na mesa do agricultor hoje já foram da colheita e compra de cinco meses atrás. Essa picaretagem não cola, mas vamos dizer que houve um pequeno incremento no valor do insumo do dólar. Houve um aumento significativo na demanda do mercado internacional, mas no mercado internacional sempre aconteceu. Não é a primeira vez que o Brasil começa a vender.

Fórum – Lá em 2010, quando o Brasil mais vendeu e cresceu 7,5%, as pessoas diziam que o Lula ganhou de presente os beneplácitos daquela política dos commodities, da exportação e exportou em 2010, em 2009, commodities como nunca exportou na história do Brasil, comparado com hoje, inclusive, e não aumentou o preço do arroz nessa proporção. O que teve foi um aumento do tomate que aí se explica por uma sazonalidade objetiva.

João Paulo – E mesmo do ponto de vista de consumo maior da merenda escolar, nós também não estamos tendo aula, então não dá para dizer que “o mercado cresceu no Brasil”, nem isso está acontecendo. As pessoas estão comendo em casa.

Em resumo, há uma especulação gravíssima por parte do mercado, que é mais grave na situação de pobreza generalizada que o país está. Isso deveria ser assunto de polícia. Esse tipo de situação, essa especulação contra a comida, que é um bem coletivo. Mas isso também explica uma falta de política pública. O Congresso Nacional aprovou recentemente a Lei da Agricultura Familiar, de apoio à agricultura familiar. Essa lei foi um consenso no Congresso Nacional, ela poderia, inclusive, resolver parte dos problemas – talvez não agora nessa crise – em médio prazo, de nosso sonho de um Natal sem fome. De nós termos comida suficiente para o Brasil a um preço barato, porque a agricultura familiar, os assentamentos como um todo, são 30 milhões de hectares de terra que poderiam estar produzindo, mas precisa de uma política de estado, de uma política pública. O Brasil produz todos os produtos que precisa na agricultura. Não tem necessidade de importar nada. Praticamente toda famosa dieta do brasileiro se produz aqui, num mundo que você não tem o que nós temos aqui do ponto de vista do solo, de terra.

Chegarmos num ponto onde o pacote de arroz está a 47 reais, o quilo de feijão a 16. Não pode. Não é possível a gente ter vivido para ver o Brasil numa situação como essa.

Fórum – Bolsonaro vetou o auxílio emergencial para os agricultores familiares, qual é o impacto desse veto?

João Paulo – O impacto primeiro é da economia como um todo, porque a agricultura familiar consegue ajudar a manter a economia, segundo alguns dados, de quase 3 mil municípios. São esses municípios abaixo de 10 mil habitantes, que são considerados municípios praticamente rurais, onde a principal atividade econômica é a produção de leite, de hortifruti. Esse é o primeiro impacto. Você tira a possibilidade dessas prefeituras receberem algum tipo de recurso através dos impostos, compras. O segundo impacto é o financiamento do plano Safra, que é justamente “você tem um período de produção, que não é qualquer dia, você tem que estar ligado no plano Safra nacional, ele poderia se incrementar e melhorar organização da produção de comida”. O terceiro problema é justamente esse do aumento de preços dos alimentos porque se agricultura não tem uma oferta maior, o governo sempre vai vir com essa desculpa de que precisa deixar o mercado regular.

Fórum – O que o MST está debatendo nesse momento em função dos acontecimentos recentes em relação ao desabastecimento e a carestia?

João Paulo – A primeira medida que nós estamos fazendo, para dentro e para fora do movimento, é um debate profundo, que é o seguinte: a função social da terra hoje deveria ser para produção de comida. É comida, que é o central. E isso vale para os assentamentos da reforma agrária.

Por que é que o Estado tem que democratizar a terra? É para produzir comida. No passado, o próprio capitalismo distribuiu terras no mundo todo: EUA, Japão, onde houve revoluções, onde houve intervenções capitalistas, porque precisava de matéria-prima para a indústria e o desenvolvimento do interior. Hoje a distribuição de terras e a democratização da terra não é mais para essa função, porque o capitalismo resolveu de outras formas. Mas não resolveu o tema do alimento. País que tem concentração de terra e países que têm uma grande concentração de empresas, como é o caso do Brasil, desorganiza muito a cadeia alimentar.

Hoje, mesmo tendo um número pequeno de pequenos agricultores, ainda produz 70% dos alimentos. Agora isso pode ser muito piorado, se não tivermos uma política de Estado para cuidar da alimentação. Isso é o que o MST está dizendo: nós temos que colocar na cabeça do povo brasileiro, dos agricultores, do pequeno agricultor que o alimento é o elemento sagrado. E para ter alimento, a gente tem que ter sementes, que é uma coisa que já não tem em nenhuma empresa brasileira grande. Todas elas são internacionais. Soberania alimentar tem que ter semente.

O Brasil embarcou numa onda do agroquímico que é muito perigosa do ponto de vista da produção de comida. Ou seja, não tem necessidade de o governo liberar 500 novos venenos para o Brasil. Para quem? Em nome de quem? A lógica da transgenia também não tem necessidade, pela diversidade do Brasil e pela quantidade de produção. E, por último, o agronegócio e as grandes potências brasileiras só se preocupam com produtos para a exportação.

Estou aqui nesse momento no extremo sul da Bahia, num conflito muito complicado pela intervenção da Força Nacional e é impressionante. O extremo sul da Bahia, para quem conhece aqui, vai do Espírito Santo até Porto Seguro, 70% do que se consome nesses municípios vem de fora, por quê? Porque só tem eucalipto e alguns assentamentos de reforma agrária. A lógica da monocultura inviabiliza resolvermos o problema da fome e o problema dos alimentos. Por isso que o MST está muito preocupado com isso, tentando elevar o nível de consciência da nossa base, para ter uma política de produção de comida, de agroecologia. Temos que dar um passo à frente que é a agroindústria, porque não adianta nada eu produzir um leite aqui na Bahia, se eu não consigo ter industrialização para que ele chegue em Salvador, ou outras cidades. Tem um pacote de organização da agroindústria. E, por último, uma política de preço justo. Não podemos produzir um alimento de qualidade para a classe média comer o alimento orgânico, comer o alimento de qualidade. Tem que ser para todo mundo!

Fórum – Hoje o arroz do MST está mais barato que o arroz Tio João nas prateleiras do mercado.

João Paulo – Hoje o nosso arroz está muito mais barato. O pacote de 5kg de arroz do MST, orgânico, está chegando nas prateleiras a R$29,00. Porque é orgânico e tem um problema de preço. Hoje nós temos, infelizmente, a produção de arroz em poucos estados. A autonomia nossa é na região Sul (Rio Grande do Sul e Paraná). Tem uma forte produção, mas ainda sem indústria no Maranhão, que é um grande consumidor de arroz. E estamos tentando avançar em produção de arroz, por exemplo aqui na Bahia. Mas o arroz nosso está com um preço muito diferenciado dessa bolha gravíssima que aconteceu agora no mercado nacional.

Fórum – Não seria muito mais caro você produzir produtos que não são orgânicos, uma vez que você tem que usar tantos produtos químicos?

João Paulo – Sem dúvida nenhuma. A taxa de lucro do negócio abaixou muito, justamente pelo alto valor implementado da indústria química. Essa contradição é um problema para eles resolverem. Qual é a diferença? É porque o agronegócio, como um todo, não quer lidar com o trabalho manual nas suas agriculturas. Eles têm uma tese, que o custo do trabalho é muito alto no Brasil. Por isso que eles querem um tipo de trabalho que paga muito menos, não querem ter carteira assinada. A forma de substituir o trabalho, que precisa para o orgânico, que precisa nas demais áreas, é substituir pela agroquímica. Esse é o argumento para se ter uma indústria completamente química.

Na região de Barreiras, no norte da Bahia, você anda 300 km e não vê uma casa e toda a área é plantada de algodão, 300 km de feijão e assim por diante. Como é que aquilo dá certo? Porque é um pacote químico sem mão de obra. E isso é uma conta que não fecha.

Revista Fórum

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