O estado de abandono total da saúde pública pelo governo de Jair Bolsonaro e, por consequência, do povo brasileiro, multiplica-se diariamente conforme a disseminação do coronavírus torna-se mais virulenta no país. Nesta quarta-feira, 97.256 óbitos por causa da doença foram anotados pelo Ministério da Saúde, ao mesmo tempo em que o país registrou 2.859.073 casos. A média de mortes continua no elevado platô de mais mil óbitos diários – foram 1.437 nas últimas 24 horas -, assim como as novas infecções, que passam de 46 mil a cada dia, em média. Cientistas apontam um quadro de altíssima gravidade e recomendam uma correção de rumos urgente para que o país salve vidas e impeça uma catástrofe maior.
Especialistas da Rede de Pesquisa Solidária, que reúne mais de 40 pesquisadores e instituições brasileiros, avaliaram a condução do governo federal e de estados e municípios no combate ao surto nos últimos cinco meses. Apesar da pouca afeição do Palácio do Planalto à ciência, as notas técnicas da rede foram produzidas para auxiliar no aprimoramento da capacidade de resposta do governo federal e de gestores locais à pandemia. Utilizando critérios do Instituto de Saúde Global de Harvard, que estabelece quatro faixas de risco de propagação do Covid-19 (baixo, moderado-baixo, moderado-alto e alto), os pesquisadores concluíram que todos os estados brasileiros estão nas duas zonas mais elevadas dos quatro níveis de risco possíveis de disseminação.
Os pesquisadores apontam, no levantamento, que o quadro é resultado direto de diversas falhas no enfrentamento da doença. Pouca adesão da sociedade às medidas de isolamento social, devido a uma dissonância entre o discurso negacionista de Bolsonaro e a quarentena recomendada por governadores, por exemplo, contribuiu imensamente para o fracasso nacional diante da pandemia, além da retomada prematura das atividades em muitos estados.
Segundo o mestrando do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Luis Guilherme Cantarelli, um dos integrantes da rede de pesquisa, houve dois momentos do país na pandemia. O primeiro se deu em março, quando todos os estados adotaram alguma medida de isolamento, alguns atingindo nível de adesão da população de até 70%.
“A média nacional ficou em torno de 60%”, afirma Cantarelli, em entrevista à ‘Radio USP’. “O isolamento não durou muito tempo e, de lá para cá, só caiu. E a tendência das medidas de isolamento também foi de queda de lá para cá”, constata. Além disso, o pesquisador também considera que o Brasil adotou medidas menos rígidas do que outros países da Europa e nações vizinhas como a Argentina. O que nos leva ao segundo momento, atual, onde a taxa média de isolamento encontra-se em torno de 40%. S
Segundo informa o relatório publicado no Jornal da USP, “a análise da adesão da população às medidas de distanciamento físico baseou-se nos dados agregados de mobilidade que rastreiam a geolocalização de aproximadamente 60 milhões de usuários de smartphones em todo o Brasil. De acordo com a nota técnica do grupo de pesquisadores, “apesar do crescimento da pandemia, ao invés de ampliarem as medidas, os governos estaduais, de forma geral, reduziram gradativamente as medidas ao longo do tempo, mesmo com a tendência nacional de crescimento acentuado nas mortes”.
Platô elevado
“Isso explica porque estamos em um platô: temos medidas mais fracas e um isolamento muito mais baixo na comparação com a grande maioria dos países”, explica Cantarelli. Além disso, a Rede de Pesquisa Solidária vem alertando há meses para o perigo da falta de coordenação nacional entre governo federal e estados e municípios, bem como a execução rápida de uma estratégia de contenção do surto pandêmico.
“O momento da pandemia no Brasil é grave, não há nenhum estado com risco baixo [de contaminação]”, afirma Tatiane Moraes de Souza, pesquisadora da Fiocruz, também em depoimento à ‘Rádio USP’. “Todos [os estados] deveriam estar focados em medidas de controle, olhando para quais medidas são possíveis de serem adotadas”, observa.
Outra dificuldade é que o país lida com a pandemia de modo heterogêneo, com respostas às vezes contrárias para situações similares, como o aumento do número de óbitos. “Essa heterogeneidade nos estados, que adotam medidas diferentes, pode até passar uma impressão de que o Brasil está em uma situação mais uniforme, o que não é verdade”, diz o pesquisador.
Naturalização de mortes
“A gente vê que o Brasil permanece nesse platô [de mil mortes diárias] e falam como se o platô fosse um controle da pandemia, o que não é”, argumenta Tatiane. “Quando a gente naturaliza 100 mil óbitos, é como se não houvesse alternativa”, compara. “E existe alternativa, existem políticas de controle da pandemia que podem ser adotadas”.
As recomendações da rede são baseadas nos casos de países que obtiveram maior êxito na contenção do surto, combinadas às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Instituto de Saúde Global de Harvard.
Testes
No levantamento, a rede confirmou também que ainda há um baixo índice de testes em massa no país. Os pesquisadores sustentam que o controle eficaz da doença depende diretamente da aplicação de testes em massa para um mapeamento da movimentação do vírus, segundo critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC). A falta de testes em massa, ou um número de testagem insuficiente, prejudica toda estratégia de combate à pandemia.
Para Tatiane de Souza, é necessário uma combinação de políticas, com a aplicação de testes e rastreamento de casos para controle da transmissão, e a manutenção das medidas de isolamento. E em alguns casos, argumenta, até de “intensificá-las”. Além disso, é preciso unificar os discursos entre as autoridades. “Se conseguíssemos uniformizar a informação.. Entendemos toda a dificuldade de [uma pessoa] ficar em casa. Mas quanto mais demorarmos para controlar essa pandemia, mais tempo de incerteza teremos”.
“É preciso que a gente veja e entenda com outros casos que vemos pelo mundo que é possível enfrentar a pandemia com política pública. Essa política precisa ser adotada de forma séria e a informação precisa ser passada para a população”, conclui Cantarelli.
Da Redação, com informações de ‘Jornal da USP’
Foto: Amanda Perobelli